terça-feira, 21 de maio de 2019

“Um Homem de Sorte”




Também poderia ser -  “Um homem e sua constelação”.

Trata-se de um filme dinamarquês dirigido por Bille August, o mesmo diretor de “Trem noturno para Lisboa”.

Filme longo (mais de 150 minutos), focado nas angústias, traumas e ambições do personagem central - Peter Andreas Sidenius.

Peter é um estudante de engenharia, visionário, ávido por abandonar definitivamente o emaranhado familiar cujas crenças religiosas chocam com sua visão de mundo a ponto de tolher suas ambições profissionais. Em Copenhague, onde consegue ser admitido numa faculdade, se envolve com uma rica e influente família judia na tentativa de conseguir apoio para seu projeto, revolucionário para a época, de geração de energia renovável. A família Solomon não só o apoia no ambicioso projeto, como também permite seu noivado com a filha mais velha, então noiva de um afetuoso viúvo judio, bem mais velho.

A meu ver o longo filme é primorosamente sustentado por dois temas principais: o delicado e suscetível afeto que se desenvolve entre Peter e Jakobe (a filha mais velha) com as discrepâncias de suas respectivas origens e percepções; e o emaranhado de sentimentos mal interpretados e mal resolvidos que Peter nutre por sua família de origem, acreditando, ingenuamente, que o simples abandono de sua terra natal seria a solução. Ambos os temas estão intrinsecamente ligados, uma vez que projetamos em cada nova e importante relação nossas demandas afetivas mais dolorosas e enraizadas.

Foi inevitável enxergar neste enredo as leis sistêmicas reveladas pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, autor das Constelações Familiares. Principalmente a Lei da Hierarquia (ou Ordem) e a do Pertencimento.

Peter, ao negar sua origem, especialmente na figura do pai, perde sua força, seu centro e, por conseguinte, sua lucidez. Honrar pai e mãe, aceitá-los exatamente como são, para além dos julgamentos (se estão certos ou errados) é essencial para nosso amadurecimento, para a descoberta necessária da matéria-herança da qual somos feitos. Nossos pais vieram primeiro e devem ser respeitados. O respeito sistêmico transcende crenças e valores individuais. Nossos pais são nossos portais de origem, de onde viemos. Querer modificá-los é não aceitar parte de nossa própria essência.

Ao longo do filme vemos um sujeito perdido entre o amor não reconhecido que o liga à sua família de origem e a dor contida, manifestada em birra, intransigência e orgulho advindos do medo de não pertencer, de não ser adequado, de não ser acolhido - em última instância, de não ser amado.

Peter personifica a pessoa vinculada a uma constelação, ou seja, a um sistema familiar, que necessita ser reconhecida como membro integrante desse sistema, independente de suas dificuldades ou virtudes pessoais. Afinal, todos nós temos um papel importante em nossa constelação e não devemos ser excluídos ou nos sentirmos excluídos, pois temos todos os mesmos direitos de pertencimento.

Quando, mais tarde, Peter se encontra no papel de pai, com sua própria família, tem a oportunidade de tatear esse “poder” e essa vulnerabilidade de ser o que antecede, de ser o primeiro. Todavia, não tem mais seu pai para se redimir, não tem como voltar o tempo. Aparenta carregar uma grande frustração por não ter se apropriado devidamente de seu Dharma. Reconhece, dolorosamente, que à sua força faltou sabedoria, serenidade, discernimento, qualidades ofuscadas pela dor de não se sentir amado e pertencido.

É que às vezes a religiosidade ganha peso à despeito do amor, e nesse contexto as pessoas se tornam frias, contumazes, duras, cheias de verdades e fé vazia. Nascer e crescer nesse contexto exige uma bravura daquelas que não tem medo de romper, mas que também, e principalmente, não tem medo de fundir-se.

“Um homem de sorte” não deixa de ser um título irônico. Perde-se o que se tem de mais precioso. Onde está sua força está sua fraqueza.

Para finalizar, preciso pinçar a delicadeza da personagem de Jakobe. No transcorrer de sua história vai ficando clara a razão de sua escolha inicial – casar-se com um viúvo mais velho, com duas filhas órfãs de mãe. É que Jakobe, discreta e atenta, carrega um coração amoroso, sensível, altruísta. Ela é a personificação judaica do amor “cristão” pregado pelo pai vigário de Peter. Mais uma ironia da vida.

O filme é longo, é verdade! Talvez para nos permitir o vislumbre de uma trajetória humana – onde tudo começa e onde tudo termina.

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