sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Perfect Sense – 2010. Dirigido por David Mackenzie



Nossos sentidos são portais? Portais para o quê?

Ora eles nos conduzem a estados de consciência alterados, ora eles nos distraem, nos fazendo perder o bafo mais quente e úmido da vida. Os sentidos podem ser como um mantra nos conduzindo a estados meditativos. Por exemplo, ao colocarmos plena atenção num som da natureza temos a possibilidade de, gradativamente, aquietar nossa mente, e escorregarmos para o salão secreto do nosso inconsciente, ou a integração serena com a natureza (a nossa natureza).

Infelizmente, quase sempre, e ao longo de toda a vida, eles são instrumentos de distração.  Usamos nossa audição, por exemplo, para escutar todo tipo de ruído externo, porém, muito pouco para a percepção dos nossos ruídos internos, nossas próprias falas desconexas e desalinhadas, muito pouco para detectar nossas incoerências (Veja, longe de fazer um julgamento sobre a incoerência. Alguns dirão, “Sou incoerente. Não tenho compromisso com a coerência”. Ok. Tudo bem. Mas você sabe identificá-las? Já farejou sobre o teor de suas incoerências? Elas dizem muito sobre você! E se você, na maior parte do tempo, não se sente pleno, sinto dizer, mas é sadio que você as dissolva, para o seu próprio bem.).

O que dizer da visão?! Como ela nos incentiva à grande cilada do julgamento! Vejo, logo julgo.

E por aí vamos... Um sem fim.

O filme Sentidos do amor, toca nessa questão. Narra uma pandemia, onde os humanos vão, gradativamente, perdendo seus sentidos: olfato, paladar, audição e, finalmente, a visão.

Mas perder um, dois, três sentidos, não é suficiente para o despertar em relação ao “piloto automático” que a humanidade vive, porque eis que se apresenta uma outra habilidade humana, também muito mal compreendida, sua capacidade de ADAPTAÇÃO. Uma adaptação muito mais identificada com a acomodação do que com a resiliência. É dizer: perco o olfato, mas... Que diferença faz? O uso que faço dele é tão raso, que não me faz tanta falta. Reservo tão pouco tempo para me deliciar com o perfume que exala do jardim que cruzo semanalmente, da comida que me sirvo diariamente, da pele da pessoa amada que adormece todas as noites ao meu lado.

Logo perco o paladar, e novamente, da perspectiva supérflua de sua apropriação, é questão de tempo para que eu nem me lembre que um dia, remoto, saboreei a rosquinha frita da vovó quando chegava, criança faminta, do clube; que o sabor do primeiro beijo foi um pouco estranho e inesperado; que a água com ervas desceu refrescante e harmônica com o menu servido no almoço.

Em seguida, perdemos a audição. Deixamos de escutar o outro; agora literalmente!

Não sei exatamente quando a “ficha” da humanidade começa a cair, mas nesse ponto do filme (da não escuta), começamos a farejar, de forma mais evidente, onde isso tudo vai dar. E é num lapso de tempo muito curto, entre o não escutar e a espreita da escuridão (perderemos a visão) que nos damos conta de um sentido sutil, imaterial, que me liga ao outro. Um sentido sublime, que pode ser a fusão de todos estes sentidos, potencializados. Nesse limite entre a terra firme e o abismo, experimentamos um Encontro, a totalidade do nosso ser.

Parece que é na falta, no vazio, que reconhecemos o todo que somos.

Os personagens principais do filme, correm desesperadamente, para aquela última chance de um abraço sob a luz da visão – metáfora incrível do nosso mergulho no Todo.

“São os teus braços, dentro dos meus braços. Via Láctea fechando o infinito” - Florbela Espanca

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“Sentidos do Amor” é uma produção britânica, vencedora no Ediburgh Film Festival

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A 100 PASSOS DE UM SONHO



Direção: Lasse Hallström
Ano: 2014

É um daqueles filmes que usa a metáfora da culinária para falar de questões humanas universais, tais como o amor, a família, o propósito de vida, as divergências culturais, a tolerância e outras tantas questões que, inevitavelmente, movimentam nossas vidas, nos proporcionando o experimento do que é ser humano.

O filme segue a receitinha de sucesso trilhada por outros filmes com a mesma temática, com estrutura conhecida e desdobramentos previsíveis. Os clichês sobre o que é ser francês ou indiano quase comprometem definitivamente o filme. Porém, ao não deixar se enganchar nesses deslizes, é possível perceber algum potencial da obra em fazer dançar algumas preciosas ideias.

O enredo: uma família indiana, após uma tragédia que leva à morte a estimada mãe da família, passa anos perambulando pelo continente europeu, mudando de cidade de tempos em tempos, até que um dia, devido a um “quase” acidente fatal (do destino!) se fixa em um vilarejo francês. Lá, por “teimosia intuitiva” do pai, resgatam um antigo casarão para abertura de um restaurante indiano. Detalhe: exatamente em frente a um respeitado restaurante francês, estrelado no famoso Guia Michelin. Bem, minimamente, já sabemos os desdobramentos que teremos.

Acontece que, deixados de lado os temas mais clichês do filme, como os (des)afetos que vão surgindo no decorrer da obra, seus encontros, e a trajetória do jovem chef de cozinha, Hassan, até seu estrelato no mundo da alta gastronomia, algo raro vai se desvelando bem diante dos nossos olhos – aquilo que denominamos SINCRETISMO. Algo que, com a força por vezes devastadora da globalização, cada vez é mais raro de acontecer. Essa “protocooperação” entre duas culturas extrapola a arte da culinária – talvez ela seja apenas o ponto de partida. Sim, porque algo novo nasce. Quando Hassan é guiado por Madame Mallory (autoritária chef do restaurante francês) pelos conhecimentos da refinada gastronomia francesa, sem abandonar a tradição indiana, um salto culinário acontece de fato, mas não menos que um salto daquelas consciências envolvidas – um entendimento de que antes de sermos franceses ou indianos, somos humanos, e que esse “humano” tem muito a se experimentar. Primeiro o reconhecimento, que se dá de forma gradativa. Logo, abre-se espaço para a assimilação recíproca, e então, o próprio ser se transforma, se expande dentro do universo que contempla algo divino no/do humano. Do mesmo modo que o prato servido no restaurante francês já não é o mesmo, a Sra. Mallory também não o é. Não é só o restaurante que ganha uma estrela. Seus personagens principais tb. Nitidamente são modificados – mantêm suas essências, mas já são outros, a partir do outro.

O tema é muito mais que uma guerra de menus!