segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Dois Papas




Dois Papas é uma obra cinematográfica sobre o encontro dos dois últimos papas da igreja católica romana. Desde o Conclave de 2005, com a eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger como Papa Bento XVI, sua renúncia em 2013, até a eleição do cardeal argentino, Jorge Bergoglio, como Papa Francisco.


O melhor filme que assisti nos últimos tempos, Dois Papas me arrebatou com seu conteúdo, seu fluxo e equilíbrio, sua medida justa (sem excessos), mas sem dúvida, sua capacidade de sintetizar tantos assuntos importantes:

Sincretismo – não absolutamente de doutrinas diferentes, mas de duas personalidades com experiências e visões tão diferentes, ambas ancoradas sob uma mesma instituição religiosa;
Respeito e tolerância (em tempos de globalização da opinião avulsa e demérito do estudo e da pesquisa);
Representatividade (Papa Francisco como o primeiro papa jesuíta e sul americano em 2 milênios de instituição);
Lei sistêmica da Ordem (um Papa honrando, antes de mais nada, e apesar de toda diferença de visão, aquele que o precedeu):
Dores latino-americanas ainda latentes: ditadura e opressão;
Humanização de autoridades religiosas;
Fragilidade de uma das maiores instituições religiosa e política – a igreja católica romana;
Espiritualidade nas coisas banais e rotineiras (quando o cardeal Bergoglio usa conceitos religiosos para explicar o “espírito” do jogo coletivo que é o futebol);
“O caminho do meio” budista: começamos o filme com um protagonista e um antagonista, clássicos, e terminamos o filme com dois protagonistas. Simbólico, não?!

Falar sobre tudo que esse filme me suscitou levaria horas sem fim. Portanto, vou apenas fazer pequenos destaques, recortes do que mais me tocou – daquilo que deixou em mim reflexões e gratidão pela constatação de saber-me um ser poroso, penetrável e mutável.

É muito fácil se apaixonar (se identificar) pelo cardeal Bergoglio. A interpretação magistral de Jonathan Pryce, deixa um canal limpo para assimilação da humanidade dessa autoridade religiosa: sua alegria, sua abertura, seus pequenos prazeres mundanos (apaixonado pelo futebol e pelo tango), suas escolhas equivocadas, suas dores e arrependimentos, sua autocrítica e superações reveladas em uma decisão e esforço em ser humilde e caridoso, sua criticidade corajosa. Tudo nele é demasiadamente humano e singelo.

Já não é tão fácil para nossa latinidade se conectar com o alemão Ratzinger (impecável Anthony Hopkins). Este nos traz facetas menos apreciadas por nós. É mais fechado, um teólogo erudito, catedrático, rebuscado, sisudo, solitário/isolado, que, ao longo do filme, por uma narrativa que busca com êxito aproximá-lo gradativa e moderadamente de nós, nos explica que, talvez, por não ter vivido a sua infância de forma pueril, mas distante da leveza e liberdade próprias de uma criança, se tornou um adulto isolado, fechado, demasiadamente sério. Sem dúvida é uma explicação que ganha nosso afeto, trazendo à tona nossa empatia.

O verdadeiro encontro, tão sublime nesta obra, se dá à medida que o encontro entre autoridades religiosas dá espaço para o encontro entre humanidades diferentes e complementares. Testemunhamos um casamento de almas alicerçado no respeito, na admiração recíproca, no propósito comum de encarnar a palavra de Deus.

Ah! E que beleza a constatação, bem clara e diante de nossos olhos, do respeito à lei sistêmica da Ordem (Bert Hellinger). Quando, no discurso de nomeação do Papa Francisco, ele, antes de mais nada, convoca a todos para orar pelo ex Papa Bento XVI. É comovente demais! Honrar o que nos antecede é poderoso, é natural, é curativo, é se colocar a favor do fluxo da vida.

“Irmãos e irmãs, boa noite!
Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais tenham ido buscá-lo quase ao fim do mundo… Eis-me aqui! Agradeço-vos o acolhimento: a comunidade diocesana de Roma tem o seu Bispo. Obrigado! E, antes de mais nada, quero fazer uma oração pelo nosso Bispo Emérito Bento XVI. Rezemos todos juntos por ele, para que o Senhor o abençoe e Nossa Senhora o guarde.”

O filme me trouxe flashes de outras “ambivalências”: o livro-diálogo do Padre Fábio de Melo com o filósofo Leandro Carnal; Freud e Jung e por aí afora.

Sigo, horas após assisti-lo, inspirando e expirando esse encontro fictício, que bem poderia ter sido real. Se não o foi, então, que ele seja real pelo menos dentro de nós, ao comungarmos nossas contradições, nossas polaridades, nossas verdades e medos – a comunhão “do bispo e do povo” que nos habita.
“E agora iniciamos este caminho, Bispo e povo... este caminho da Igreja de Roma, que é aquela que preside a todas as Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade. Espero que este caminho de Igreja, que hoje começamos e no qual me ajudará o meu Cardeal Vigário, aqui presente, seja frutuoso para a evangelização desta cidade tão bela!
E agora quero dar a bênção, mas antes… antes, peço-vos um favor: antes de o Bispo abençoar o povo, peço-vos que rezeis ao Senhor para que me abençoe a mim; é a oração do povo, pedindo a Bênção para o seu Bispo. Façamos em silêncio esta oração vossa por mim.”

O Papa Francisco abaixou a cabeça em sinal de oração e todo o povo silenciou por um momento. O mesmo homem que durante a cerimônia do Conclave assoviava, faceiramente, Dancing Queen.

Antes de encerrar, vale destacar que coube principalmente à trilha sonora dar os preciosos pitacos cômicos e de bom humor à obra. Dancing Queen – Grupo Abba / Blackbird – Beatles / Bella Ciao – Banda Bassotti / Bésame mucho / Guantanamera...

Viva Fernando Meirelles!
Viva o cinema!
Viva Anthony McCarter!
Viva Jonathan Pryce!
Viva Anthony Hopkins!
Viva a vida!!!






quarta-feira, 29 de maio de 2019

Girl


Filme belga de 2018, dirigido por Lukas Dhont.
Indicado ao Prêmio Globo de Ouro: Melhor Filme Estrangeiro  

Questionei-me se deveria escrever sobre um filme que fala do universo transgênero, uma vez que não estou tão familiarizada com estas questões. Todavia, o filme me foi tão tocante, que resolvi arriscar priorizando os pontos que me sensibilizaram e despertaram o interesse em divulgá-lo.

Girl conta a história de uma adolescente belga, Lara, que aguarda ansiosa pela operação de troca de sexo. O respeito e a quase naturalidade da transexualidade de Lara em seu contexto familiar e social são chocantes para países como o nosso, principalmente para o Brasil que continua em primeiro lugar no ranking dos países que mais matam transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU). Esse dado me dispensa desvelar a falaciosa crença brasileira de que somos um povo sem preconceitos e tolerante – duas qualidades que, a meu ver, só podem surgir, legitimamente, em sociedades minimamente instruídas e em culturas conectadas com sua natureza. Definitivamente, e lamentavelmente, não é o nosso caso.

Mas não quero continuar nesse rumo, pois careço de (in)formação, além de perder a oportunidade de me deleitar com aquilo que mais gosto - refletir sobre aquele “não sei o quê” que me toca a alma em momentos de distração cinematográfica.

Logo nos primeiros minutos percebemos Lara numa ansiedade contida, contando as horas para acabar definitivamente com qualquer resquício que possa lembrá-la que nasceu em um corpo, cujo gênero não corresponde à sua pessoa. Ela vive a totalidade da puberdade, com seus conflitos e exigências de aparentar ser o que já se é e não se sabe. Não sou transgênero, mas sou mulher e sei, por experiência, que ainda adolescente, com todos os meus hormônios em festa, sentia uma necessidade hercúlea de afirmar minha feminilidade com tudo que eu entendia como tal. Com Lara, naturalmente, não foi diferente.

Gosto muito de uma frase do Deepak Chopra que diz: “Toda semente traz em si a promessa de muitas florestas”. Aos 7 minutos de filme, o doce e presente terapeuta de Lara resume todo o processo psicológico que ela passa ao dizer: “_ mas você já é tudo o que será”, na intenção de acalmá-la, de desapressá-la, de ilustrar que tudo, absolutamente tudo, tem seu tempo. É que a semente é a floresta. Basta-lhe o tempo da manifestação. E não é assim que a vida se dá? Quem nunca fez uma pausa em Eclesiastes 3?

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; ...”


É possível que eu desaponte muitos que vêm no filme uma bandeira sobre as questões de gênero e do feminismo. Peço que me perdoem o recorte, mas é que a minha conexão se deu para além dessas questões – me interessou aqui o indivíduo em si mesmo. Apesar da dedicada e preparada equipe médica e psicológica que acompanha Lara, do apoio amoroso e incondicional do pai, da compreensão dos familiares, da aceitação razoável nas esferas sociais em que Lara convive, o conflito interno está ali – como prova do imanente em nós. A cena urbana de Lara em meio à multidão; um pontinho entre tantos; um conflito entre tantos outros – uma multidão de iguais em suas diversidades.  Tão belo!

Em um momento de esgotamento psicológico, numa conversa franca com seu pai, ele tenta motivá-la, reanimá-la, aprumá-la, mostrando como ela é um exemplo de coragem para tantas outras mulheres trans. Lara responde, “Não quero ser exemplo. Só quero ser uma garota”. Portanto, não serei eu, nesse insignificante post, que levarei essa história que pretende apenas ser a história de uma adolescente trans. Simples assim, em sua complexidade.

Como deixar de falar de sua relação obstinada com a dança? Tenho alma bailarina!

É na dança clássica que ela acaricia e afaga seu lado mais feminino, embora desde o primeiro minuto o filme nos mostre sua alma feminina se expressando no cuidado com o irmão caçula, na habilidade de administrar as atividades domésticas compartilhadas com o pai. É em seus árduos treinos que ela testa sua capacidade de superar limites. É no apoio dedicado e fiel de sua professora de dança que ela encontra o apoio para persistir. É no seu grupo de colegas bailarinas que sua verdade é colocada em xeque. É o suor que começa a molhar seu collant nos revelando, gradativamente, a transformação da pedra em ouro. Que alquimia maravilhosa! A última cena do filme nos dá um vislumbre futuro da linda mulher que se desvelou.

As falhas técnicas do filme, sua precária filmagem nas cenas de dança que, por vezes, nos deixa meio zonzos, as reflexões sobre as minorias que o filme pode e deve levantar, a escolha de um ator cis gênero para o papel de Lara – tudo o mais, deixo para os verdadeiros críticos de cinema.

terça-feira, 21 de maio de 2019

“Um Homem de Sorte”




Também poderia ser -  “Um homem e sua constelação”.

Trata-se de um filme dinamarquês dirigido por Bille August, o mesmo diretor de “Trem noturno para Lisboa”.

Filme longo (mais de 150 minutos), focado nas angústias, traumas e ambições do personagem central - Peter Andreas Sidenius.

Peter é um estudante de engenharia, visionário, ávido por abandonar definitivamente o emaranhado familiar cujas crenças religiosas chocam com sua visão de mundo a ponto de tolher suas ambições profissionais. Em Copenhague, onde consegue ser admitido numa faculdade, se envolve com uma rica e influente família judia na tentativa de conseguir apoio para seu projeto, revolucionário para a época, de geração de energia renovável. A família Solomon não só o apoia no ambicioso projeto, como também permite seu noivado com a filha mais velha, então noiva de um afetuoso viúvo judio, bem mais velho.

A meu ver o longo filme é primorosamente sustentado por dois temas principais: o delicado e suscetível afeto que se desenvolve entre Peter e Jakobe (a filha mais velha) com as discrepâncias de suas respectivas origens e percepções; e o emaranhado de sentimentos mal interpretados e mal resolvidos que Peter nutre por sua família de origem, acreditando, ingenuamente, que o simples abandono de sua terra natal seria a solução. Ambos os temas estão intrinsecamente ligados, uma vez que projetamos em cada nova e importante relação nossas demandas afetivas mais dolorosas e enraizadas.

Foi inevitável enxergar neste enredo as leis sistêmicas reveladas pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, autor das Constelações Familiares. Principalmente a Lei da Hierarquia (ou Ordem) e a do Pertencimento.

Peter, ao negar sua origem, especialmente na figura do pai, perde sua força, seu centro e, por conseguinte, sua lucidez. Honrar pai e mãe, aceitá-los exatamente como são, para além dos julgamentos (se estão certos ou errados) é essencial para nosso amadurecimento, para a descoberta necessária da matéria-herança da qual somos feitos. Nossos pais vieram primeiro e devem ser respeitados. O respeito sistêmico transcende crenças e valores individuais. Nossos pais são nossos portais de origem, de onde viemos. Querer modificá-los é não aceitar parte de nossa própria essência.

Ao longo do filme vemos um sujeito perdido entre o amor não reconhecido que o liga à sua família de origem e a dor contida, manifestada em birra, intransigência e orgulho advindos do medo de não pertencer, de não ser adequado, de não ser acolhido - em última instância, de não ser amado.

Peter personifica a pessoa vinculada a uma constelação, ou seja, a um sistema familiar, que necessita ser reconhecida como membro integrante desse sistema, independente de suas dificuldades ou virtudes pessoais. Afinal, todos nós temos um papel importante em nossa constelação e não devemos ser excluídos ou nos sentirmos excluídos, pois temos todos os mesmos direitos de pertencimento.

Quando, mais tarde, Peter se encontra no papel de pai, com sua própria família, tem a oportunidade de tatear esse “poder” e essa vulnerabilidade de ser o que antecede, de ser o primeiro. Todavia, não tem mais seu pai para se redimir, não tem como voltar o tempo. Aparenta carregar uma grande frustração por não ter se apropriado devidamente de seu Dharma. Reconhece, dolorosamente, que à sua força faltou sabedoria, serenidade, discernimento, qualidades ofuscadas pela dor de não se sentir amado e pertencido.

É que às vezes a religiosidade ganha peso à despeito do amor, e nesse contexto as pessoas se tornam frias, contumazes, duras, cheias de verdades e fé vazia. Nascer e crescer nesse contexto exige uma bravura daquelas que não tem medo de romper, mas que também, e principalmente, não tem medo de fundir-se.

“Um homem de sorte” não deixa de ser um título irônico. Perde-se o que se tem de mais precioso. Onde está sua força está sua fraqueza.

Para finalizar, preciso pinçar a delicadeza da personagem de Jakobe. No transcorrer de sua história vai ficando clara a razão de sua escolha inicial – casar-se com um viúvo mais velho, com duas filhas órfãs de mãe. É que Jakobe, discreta e atenta, carrega um coração amoroso, sensível, altruísta. Ela é a personificação judaica do amor “cristão” pregado pelo pai vigário de Peter. Mais uma ironia da vida.

O filme é longo, é verdade! Talvez para nos permitir o vislumbre de uma trajetória humana – onde tudo começa e onde tudo termina.