terça-feira, 22 de setembro de 2015

Que horas ela volta? - filme de Anna Muylaert (2015)




De um extremo ao outro


PERSPECTIVA Nº 1 – DO QUE NÃO SE COMPRA. DAQUILO QUE SE CONSTRÓI.

A vida é um eterno chegar e partir. Isso nós já sabemos. Partem amigos, maridos, chefes, vizinhos, professores... As pessoas partem da vida da gente, e no ângulo oposto, nós partimos das pessoas. Mas num elo mais forte, entre pais e filhos, essa partida, breve ou longa, causa grandes estragos.

Quem parte tem suas razões. Quem fica, nem sempre sabe a razão do abandono ou despedida.

Também há aqueles que, embora nunca tenham partido (fisicamente), também nunca estiveram.

Expectativas frustradas... Tempo que não tem volta.

De um lado temos uma mãe que tinha total condição de exercer a maternidade plenamente, mas que a deixa a cargo da empregada. De outro, uma mãe que precisa partir para ganhar o sustento que garantirá melhores condições futuras para sua filha. Filhos gerados, ou só criados – não importa!, os elos são feitos de afeto. Uma criança encontra na empregada a mãe que carecia. E quando mais tarde a mãe biológica tenta ocupar seu papel (ilustrada na tentativa de mitigar a frustração do filho por não passar no vestibular), não se sente confortável, não se adequa a ele, afinal, esse “posto” não se compra, se conquista.


PERSPECTIVA Nº 2 – O QUASE

O “quase” nunca é. O “quase” dói por não ser. O “quase” engana, mas não convence. Há coisas que são ou não são, por não permitirem meio termo. A polidez não substitui a verdadeira estima. A patroa polida e educada sente o incômodo dever de retribuir aquilo que o dinheiro não paga: amor e dedicação. Então, no afã de mostrar seu pseudoreconhecimento promove a serviçal a “quase da família”.

Meu deus!!! Como esse “quase” revela tudo!

Como pagar (atenção: não digo retribuir) a empregada por exercer o papel de mãe a que ela declinou? O papel de “dona de casa” assumido dedicadamente pela empregada, que cuida e promove um lar aos que ali vivem? Simples. Promovendo-a a “quase membro da família”.


PERSPECTIVA Nº 3 – VISLUMBRO-ME FACILMENTE COM O QUE CAREÇO.

O marido vivo-morto. Não passa de uma sombra que vagueia dentro da própria casa, perdido entre o que poderia ter sido e o que é. Qualquer vislumbre de vitalidade, de autoconfiança, de determinação, de potência – no caso personificada pela filha da empregada – pode deslumbrá-lo, acordá-lo da letargia / apatia que o domina.


PERSPECTIVA Nº 4 – QUEM INVENTOU ESSAS REGRAS?

O que me cabe como patrão? O que me cabe como empregado? Qual o meu lugar? Até onde posso ir? Posição social é herança a ser deixada aos filhos? Quem inventou essas regras sociais? Por que não as questionamos? Minha submissão é uma herança hereditária?

Cabe à filha da empregada trazer à tona todas essas questões e, principalmente, romper a polidez disfarçada de respeito. É ela quem aponta o engano do “quase”. Que nos mostra que esse status quo é uma armadilha social, uma prisão que nos faz resignar ao “quase”: quase sermos merecedores, quase sermos dignos, quase sermos valorizados, quase sermos ouvidos, quase sermos da família.


Vale destaque a belíssima cena da piscina, quando a empregada-mãe-nordestina, no ato sorrateiro de entrar na piscina, ousa ultrapassar a linha invisível da discriminação.

PERSPECTIVA Nº 5 – EU, VANESSA

Como ser adestrado, começo assistindo ao filme ingenuamente. “Que garota é essa que não se enxerga? Que prepotente!”; “Ainda vai fazer a mãe perder o emprego”; “Ela está seduzindo o patético patrão?”;

Termino consciente de que não há certo ou errado num mundo onde tudo é ponto de vista, onde tudo é ilusão (Maia); Que as regras estão aí para serem questionadas; Que autorespeito pode ser confundido com prepotência, mas nem de longe são a mesma coisa. Que cada um tem a sua história, e ela não vem estampada na cara.

Durante os 110 minutos de filme fui levada de um extremo ao outro, e os julgamentos substituídos por perguntas ainda sem respostas.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

GATTACA - Medo, o desafio que nos impulsiona


 
Quando falamos de medo, dá até medo! Mas já perceberam quanta coisa boa pode acontecer a partir dele? Tem gente que pensa que não tem, mas... quem nunca sentiu medo de perder o acesso às criaturas que ama? Não ser bom ou preparado o suficiente? Não ser amado quanto gostaria? De cair gradativamente no esquecimento por aquele que jamais esqueceremos? De não se curar de um grande mal? De sonhar e, mais uma vez, ter seu sonho interrompido?
Às vezes nos paralisamos diante dele. Mas, às vezes, ele nos desafia a tal ponto que nos impele rumo ao imprevisto, ao sem garantia, aos verdadeiros e novos descobrimentos. O medo se torna um convite arriscado para conhecermos nuanças próprias que, na acomodação e na garantia de segurança, jamais seriam percebidas. Desafiar o medo, encará-lo com coragem (com o coração) é ampliar-se. Coragem e determinação andam juntas, sendo o medo o ponto de partida. Coragem parece ser atribuição da alma. À matéria (gene) cabe refleti-la de uma forma mais densa e óbvia.
Eis do que se trata essa história – Um sujeito “classificado” (reduzido) a partir de seu código genético, que com audácia, coragem e determinação prova a si mesmo (A si mesmo!!! Isso é o mais legal.) que ele é muito mais que um gene. E vai além -  que é esse gene que está “a seu serviço”, e não o contrário.  Falando de outra forma: a matéria como reflexo de nossos corpos mais sutis (do sutil para o denso). Quem (ou o que) está por trás? Quem tem as “rédeas” de nossas vidas? Quais os nossos limites? O que significa cumprir a nossa vocação humana?
O filme mostra, cronologicamente, uma disputa de resistência, em alto mar, do personagem principal com o seu irmão geneticamente viável (perfeito) - na infância, quando jovens, e mais tarde, já adultos. E me é inevitável a associação à algumas leituras que tenho feito sobre a Epigenética.
Pra quem não sabe, a epigenética é definida como modificações do genoma que são herdadas pelas próximas gerações, mas que não alteram a sequência do DNA. “Por muitos anos, considerou-se que os genes eram os únicos responsáveis por passar as características biológicas de uma geração à outra. Entretanto, esse conceito tem mudado e hoje os cientistas sabem que variações não-genéticas (ou epigenéticas) adquiridas durante a vida de um organismo podem frequentemente serem passadas aos seus descendentes. A partir do momento em que um óvulo é fertilizado por um espermatozoide, essa nova célula (agora denominada de ovo) dará origem a um conjunto de células que irão originar o embrião. A formação do embrião depende da captação de sinais pelas células, sinais estes que podem vir de dentro das próprias células, de células vizinhas (incluindo as células da mãe) e do meio externo (do ambiente). Os sinais recebidos pelas células irão determinar não somente a morfologia e fisiologia do futuro embrião e indivíduo, mas também o seu comportamento. Nesse sentido, as células respondem a nutrientes e hormônios, mas também a sinais físicos, como calor e frio, e comportamentais, como estresse e carinho”. Há estudos que mostram que “as mães passam aos filhos os efeitos cognitivos durante a gestação, provavelmente liberando hormônios que fazem com que marcadores químicos epigenéticos (não dependentes dos genes) apareçam nos genes de seus filhos, regulando sua expressão depois do nascimento”.
Apesar de receber, ainda bebê, o prognóstico de que seria um ser geneticamente falho, fracassado, e com poucos anos de vida, essa parte de que somos feitos, que está para além da matéria, decide não se resignar, interfere e modifica a “determinação genética” escrevendo uma nova história, se tornando um ser muito diferente do que se previa.
Que ousadia da ciência achar que pode nos definir e apontar nosso “destino”!
Outros pontos também me chamaram a tenção:
- Qual a vantagem de sermos perfeitos (ou quase perfeitos)? Não seria o lance de sermos imperfeitos o “Q” que faz essa vida ter algum sentido? É a partir desse ponto de “imperfeição” que podemos nos movimentar, nos experimentar, seguirmos em direção a algo maior. Do aquém para o além.
- Economizamos uma energia que é inacabável. Pra quê? Postergamos, pra quê? Economizar o que em nós é infindável (amor, plenitude, sabedoria...) não faz sentido. A vida é um convite à exploração! Só temos o momento presente para fazer o que há de ser feito. É em alto mar, voltando-se para o seu irmão “perfeito” e derrotado, que ele diz algo assim: “não guardo energia para voltar”. É dizer, o momento é o “aqui e agora”. É hoje o dia de nos superarmos e “exalarmos” o melhor que há em nós!
Sem dúvida um grande filme. Recomendo!


Referência: MARCELO FANTAPPIÉ, Ph.D., é Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador do Laboratório de Helmintologia e Entomologia Molecular do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Sobre o filme "Preto ou Branco" - de Mike Binder


Se o recomendo? Bem, depende do tamanho de sua lista de prioridades diárias. Não se trata de um filme excelente, imperdível. Mas há algo nele que despertou meu interesse, desencadeando uma reflexão que me levou a outras direções, bastante interessantes. Se não o levar também, pelo menos garanto a atuação impecável de Kevin Costner. Seus olhos são expressivos demais pra minha pessoa! Kkk...
Muito mais do que tocar no tema sobre o racismo como sugere o nome do filme - um racismo alimentado pela própria raça afligida, como faz Jeremiah Jeffers (advogado irmão da vó paterna), sobre o vício que apaga qualquer vestígio de dignidade (Reggie, o pai viciado), este filme sussurra otras cositas más, como, por exemplo, os atributos do Feminino, personificado pela avó Rowena, mãe do pai viciado. Toca também no tema da mágoa bem guardada, numa espera silenciosa por um pedido de perdão, como ponto de partida para a cura. E como se não bastasse, mostra esse impiedoso vício humano de negar nossos vestígios animais.
Pois bem: Rowena é a mulher que acredita no ser humano, que acredita no amor; um arquétipo da grande mãe bem encarnada, que não desiste do filho, que se faz forte para manter a família unida e em harmonia, que procura uma relação harmoniosa e justa mesmo com seu “adversário”, que não perde o foco em proporcionar o que for melhor para sua prole. Rowena acredita que trazer sua neta para perto do pai, poderá salva-lo.
Elliot é a outra parte. É o pai que perdeu sua filha sem ter tido a oportunidade de se reconciliar com ela e ampará-la antes de sua morte. É também o avô que tem a guarda da neta. Elliot não vê sua dor e de sua recém falecida esposa reconhecidas por aquele que ele julga responsável pela tragédia familiar. Neste caso, o arrependimento do vilão (Reggie) - seu pedido de perdão, é um passo necessário para seu processo de cura, e Elliot vive à espera desse dia.
Mas, particularmente, o ponto crucial do filme está na cena do tribunal, onde o avô é interpelado sobre ser ou não racista. Irônico, porque o racismo está, de fato, na outra parte, do lado dos próprios negros. É o avesso do avesso do Caetano!
O mérito dessa obra está em extrapolar esse tema (sou ou não racista), e aprofundar numa questão humana que nos lembra que também somos animais, que temos instintos, que fazemos reconhecimentos por meio dos opostos (preto/branco; claro/escuro; frio/quente) que não devemos ser interpretados pelo nosso primeiro pensamento/ reconhecimento/julgamento, mas pelo que vem depois - nosso segundo, terceiro, quarto pensamento, pelo que fazemos a partir daí. Um homem vê uma mulher e a primeira coisa que “reconhece” são seus peitos. Tá! E daí? Ele é um tarado? Sou apresentada à nova colega de trabalho, uma negra. Primeiro reconhecimento: minha pele é branca, a sua é negra. E??? O que se segue? A questão não é se isso é legal ou não que se dê num “ser de bondade” (nós humanos!), mas reconhecermos nosso lado instintivo para, um dia quem sabe, podermos transcender essa ilusão da separatividade e nos tornarmos plenamente conectados com tudo e com todos.

Você pode se perguntar por que tomei um rumo de reflexão tão improvável. Bem, desconfio que tudo veio à tona porque, no dia anterior, assistindo o canal da National Geographic, aprendi que as hienas organizam um ataque em grupo à sua presa, geralmente de porte muitas vezes maior que os seus, e a come viva. Num primeiro momento me pareceu tão brutal, tão violento. Um hemisfério “além do animal” fazendo julgamentos de um outro que evita reconhecer como seu. Complicou? Vou tomar um recurso poético. Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) pode nos ajudar.
“Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.  Mas não penso nele
     Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)                  
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
     Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
     Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
     Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...”




sábado, 6 de junho de 2015

O Sal da Terra - Documentário / Biografia - 2014

Direção: Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado



Ontem assisti ao documentário sobre a vida e obra do fotógrafo Sebastião Salgado. Não tinha a mínima ideia do caminho a que essa narrativa me conduziria. Subjuguei o poder que as imagens artísticas, por mais belas que fossem, poderiam me causar. Ou melhor, acreditei que seriam apenas “belas imagens”, como já havia visto em algumas exposições do mesmo artista, em outras ocasiões. Não que elas não tenham me tocado antes, mas seu toque, até então, havia sido superficial. Haviam me tocado o intelecto , o racional, e ligeiramente o coração. E o corpo, naquelas ocasiões, diante daqueles imensos painéis, dizia: que incrível! Que bárbaro!


Mas dessa superficialidade só vim a saber ontem, após ouvir a amarração narrativa de todas essas imagens; após a explicitação do cordão umbilical que une essas imagens ao seu criador – artista e obra, agora juntos, numa exposição cinematográfica – da própria vida!


O que antes era belo se tornou sublime! Meu corpo não deu conta de suas exclamações de encanto, só conseguia chorar. E ainda choro...

(...)

Um choro raro, incomum pro meu ser. De uma desesperança que me extrapola. Desesperança na própria humanidade que eu experimento em mim, cotidianamente. Racionalmente formulo-me a pergunta: como pode a espécie humana ir da barbárie à imaculada ação? Já o coração, não faz perguntas - só observa a lágrima, no seu trajeto quente, tornando-me consciente do meu próprio corpo, me fazendo sentir que eu também sou essa crueldade em última instância.

Não sou assim, tão pessimista. Porém, nessas últimas horas que sucedem o filme, ainda vago nesse universo de descrença e desesperança acerca da humanidade.


O documentário, ao revelar a vida e obra do artista, revela-nos, simultaneamente, a complexidade humana, sua polaridade, a diferença entre o “meu mundo” e os “outros mundos”. Em 94, enquanto “meu canto no mundo” se coloria com a descoberta do primeiro amor, “outros cantos no mundo” só conheciam o vermelho rubro de muito sangue exposto. E assim oscilamos: da luz às trevas; da glória à vergonha; da graça ao absurdo. E tudo isso dentro de nós!


Sob o ponto de vista da trajetória do artista, o ciclo se fecha harmônico e naturalmente, como convém a um herói. A “jornada do herói” é nítida em cada uma de suas fases. Ele nasce em Minas, se casa, e ainda jovem adulto, descobre seu dharma. Sacrifica os “seus”, ao seguir seu chamado, ficando mais tempo distante da família do que em seu convívio. Chega ao apogeu de sua profissão, sendo reconhecido e respeitado mundialmente; Enfrenta suas dores ao ser testemunha da crueldade e desconexão humanas; recua, se deprime; A partir do retorno às suas origens, do contato com a natureza, agora como cuidador (e não mais uma testemunha), ele recupera a fazenda de seu pai, em Minas, já muito degradada, iniciando seu processo de cura e preparação para o mistério que a idade já avançada lhe acena. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Garota da vitrine

Filme de Anand Tucker , de 2005, baseado no libro Shopgirl de Steve Martin



“Certas noites, sozinho, ele pensa nela. E certas noites, sozinha, ela pensa nele. Certas noites, isso acontece ao mesmo tempo, e Ray e Mirabelle se relacionam sem saber.

Começo o artigo batendo palmas, fazendo barulho, dando pulinhos e gritando “assistam!”, “assistam!”, “assistam!”
Se pudesse, com a ajuda de uma varinha de condão, colocaria todos diante de uma grande tela e passaria esse filme, como uma anfitriã que, ao receber seus convidados especiais, oferece uma sobremesa exótica e desconhecida, esperando que eles desfrutem de seu raríssimo sabor.
Sim, gostaria profundamente que esse filme ocupasse todas as salas de cinema comerciais para que todos pudessem compreender como atraímos aquilo que mais tememos - SOFRER; Como todos os mecanismos e estratégias de proteção e autodefesa de uma POSSÍVEL dor (advinda do medo de perder algo precioso) nos garante, mais cedo ou mais tarde, uma dor ainda pior – aquela que, por não ser enfrentada, por não ser dilacerante e pontual, se faz presente rotineiramente, em doses homeopáticas, camuflada, tornando nossos dias mais opacos, menos alegres, apáticos, mornos, controlados, confirmando a perda tão temida, que talvez, se não fosse o temor, POSSIVELMENTE nem aconteceria.

Vamos aos nossos personagens.

Mirabelle – o arquétipo do sublime, o objeto do desejo, o ideal a ser alcançado, o simples (aqui no sentido do fundamental, indivisível, essencial, que não carece acréscimos). Uma artista plástica principiante, que financiou seus estudos, saiu da pacata Vermont e foi tentar a vida em Los Angeles. Trabalha vendendo luvas numa grande loja de departamento e, esporadicamente, por meio de um marchand, vende seus trabalhos artísticos. É doce, de um sorriso meigo e transparente, ligeiramente deprê, que na intimidade, é capaz de contrapor sua aparente pacatez, com gestos audaciosos e surpreendentes. Uma mulher diferente da maioria das mulheres.
Jeremy – o arquétipo do trapalhão, do bobo, sem futuro. Tipógrafo e vendedor de amplificadores, é um rapaz desajustado, sem eixo, sem grana, que conhece Mirabelle numa lavanderia e, já a partir dos primeiros contatos, se sente motivado a se transformar para ser o escolhido de Mirabelle. DEStemido.
Ray Porter – o arquétipo do homem bem sucedido. Empresário rico, solteiro, meia idade, que busca uma relação que não lhe traga riscos (de mudar, de sofrer, de sair de sua zona de conforto - indolor). Busca uma relação que não lhe tire a garantia de um chão firme e conhecido. Nem por isso insensível. Com uma lupa, podemos perceber um homem com grande sede e capacidade de amar e cuidar, porém muito temeroso de se entregar. Faz terapia e presa pela sinceridade em suas relações. Pena que não consegue estabelecer a mesma sinceridade com ele próprio!

Vamos ao enredo.

O maduro Ray se encanta pela jovem e simples vendedora de luvas e dá início à conquista de sua atenção, porém deixando claro, logo no 1º encontro, que não busca uma relação permanente e exclusiva. Mirabelle, carente de amor, não só corresponde, como aceita sua proposta, pois acredita que não tem muito a perder, além de não enxergar nada suspeito no sujeito grisalho, enigmático, de olhar penetrante e atento. Aceita um convite para jantar que dará início a uma relação gostosa, leve e acolhedora (vide o cuidado dele com ela quando, ao deixar de tomar seus antidepressivos, ela tem uma recaída). Ray nem sempre consegue sustentar sua proposta de relacionamento superficial, e, por vezes, deixa escapar suas intenções mais profundas ao fazer planos a médio prazo como, por exemplo, uma futura viagem a NY ou a comemoração do aniversário de Mirabelle no ano seguinte. Escapes que alimentam silenciosamente, na esperançosa mocinha, a possibilidade de uma relação duradoura e mais profunda. Mirabelle abre seu coração, deixa esse amor ocupar todo o espaço disponível, com cuidado devido, é certo!, mas sem meio termos. Com uma verdade profunda. Tantos gestos de cuidado e atenção sinalizam um sentimento elevado entre ambos, de amor e legítimo interesse em comungar a vida.
Enquanto isso (na sala de justiça) o despirocado Jeremy, à convite de uma banda de rock para acompanhar uma turnê que durará alguns meses, começa a trilhar um caminho de autoconhecimento, centramento e compreensão acerca das viabilidades de uma relação amorosa. Tudo isso motivado pelo seu encantamento por Mirabelle. Vale destacar que Jeremy é um ser completamente flexível, aberto às transformações, ao crescimento, à exploração, sem muitos traumas, quase uma folha em branco que se coloca disponível para uma história de amor.
Tudo corre bem na relação entre Ray e Mirabelle e, embora não se fale em amor, é possível percebê-lo em cada gesto e olhar. Até o dia em que Ray trai Mirabelle ficando com uma conhecida. Trai como quem cava um motivo qualquer, porém infalível, para estragar (ou testar) a relação. É dizer, sobre uma abordagem mais profunda - trai, não Mirabelle, mas o seu sentimento por ela. Sem coragem para lhe contar verbalmente sobre sua traição, garante tal confissão com uma carta que entrega pessoalmente a ela. Eu particularmente suspeito que tal traição foi um teste de Ray, porque no fundo ele não acreditava que Mirabelle o abandonaria. Queria mesmo testar se estavam conseguindo manter uma relação aberta. Para sua surpresa Mirabelle sofre muito e o abandona.
Mas Ray não consegue sustentar esse rompimento e procura Mirabelle na tentativa de reatarem. Após um tempo distantes acabam voltando e resgatando o frescor da relação. Interessante como não será a traição o motivo da separação definitiva, mas sim uma provocação “quase inconsciente” de Ray ao dizer, num tom entre a displicência e a brincadeira, que arrumou um apartamento em NY para, quem sabe, o dia em que ele encontrar alguém, casar e tiver filhos. É nesse instante que Mirabelle se dá conta, com clareza, da situação que está vivendo, da falta de perspectiva. Sabe que não sustentará isso por muito tempo e que, mais cedo ou mais tarde, vai sofrer pelo rompimento. A corajosa Mirabelle não adia nem dissimula a dor à espreita, e decide então colocar um fim definitivo na relação.
Ambos vivem momentos de luto, mas não um mesmo tipo de luto. Mirabelle foi verdadeira, se arriscou, não poupou, não criou autodefesas vãs. Se expôs, sem orgulho e corajosamente. Ao ir fundo em direção à inevitável dor, pode emergir revigorada e leve, como quem salta num lago profundo e ao tocar os pés no seu fundo, num impulso forte e decidido se projeta em direção à sua superfície. Os dias sombrios se vão e, aos poucos, com a ajuda da sua arte, consegue virar a última página de um capítulo de sua vida chamado Ray.
Já o luto de Ray é um processo mais lento e difuso, bem provável, de uma vida toda. Luto de quem não viveu plenamente, não se arriscou, não se entregou, de quem chegou até à borda de uma piscina em um dia ensolarado e quente e só molhou as pontas dos pés. Sofreu então a tão temida e tão evitada dor. Sentiu o quão é vão se proteger do Amor, afinal, Ele sempre nos vence, seja se fazendo presente e nos consumindo todo, primeiro em euforia e exaltação, mais tarde em suavidade e ternura, seja nos abandonando e nos deixando sós, secos e sem sentido.
Quando se olha de uma certa distância para vida, para um tempo remoto, ela parece mesmo orquestrada, um espetáculo onde cada ato está devidamente amarrado ao outro. Digo isso porque, é nesse distanciamento quântico entre Mirabelle e Ray que ressurge Jeremy, chegado de um longo período sabático, podemos dizer. Ambos mudaram muito nestes 14 meses transcorridos, não estão mais no mesmo ponto onde se conheceram. Jeremy agora está mais centrado (menos perdido), mas igualmente disposto a conquistar Mirabelle, afinal, foi ela a grande motivação dessa transformação. Mirabelle continua carente e solitária, tanto quanto todos os personagens dessa história, mas muito mais fortalecida. Cresceu, amadureceu e parece agora ela mesma pintar os seus dias, sem depender de terceiros. Por isso, desta vez, é capaz de olhar para Jeremy de uma forma muito mais profunda. É ela agora quem bota cor e sentido em tudo que vive e que vê. Decide “ver” Jeremy, com suas potencialidades, sua leveza, sua abertura e destemor para o viver. Sente a reciprocidade do seu amor, e isso lhe faz feliz.

"Mas Mirabelle, sentindo a reciprocidade do seu amor pela primeira vez, afasta-se dele (de Ray), e enquanto Jeremy oferece ainda mais seu coração, Mirabelle retribui na mesma medida. (...) Assim, Jeremy supera Ray Porter como amante de Mirabelle, pois o que ele oferece a ela é terno e verdadeiro. (...)"

De sua parte, Ray toca sua vida, como antes de conhecer Mirabelle.
O último encontro entre ambos é de uma beleza ímpar. Temos um quadro nítido do que podemos fazer com a nossa vida. Podemos dar valor a esse presente da vida, que é amar, e fazê-lo florescer, ou podemos, por medo, deixa-lo minguar, guardado pra sempre em uma caixinha no fundo do armário. Nesse último encontro Ray se dá conta do que perdeu por medo de perder.

“Ao ver Mirabelle se afastar, Ray Porter sentiu uma perda. Como é possível, pensou ele, sofrer por uma mulher que manteve à distância para não sentir falta dela quando ela fosse embora? Só então percebeu o quanto querer só uma parte dela fez os dois sofrerem. E como não podia justificar seus atos, exceto por, “Bem... A vida é assim.”

Detalhes a serem observados:

ü  A pergunta silenciosa de Mirabelle: “Por que eu?”
ü  A observação de Mirabelle de que nada em Ray parecia suspeito.
ü  Ray ao tirar o relógio do pulso de Mirabelle diz: “Agora eu sou o seu relógio”
ü  Na primeira vez que vai à casa de Ray, ela o espera nua sobre sua cama.
ü  Ray sempre esperando por Mirabelle na porta de sua casa.
ü  O cuidado de Ray quando Mirabelle fica depressiva.
ü  O tom verde que sobressai da casa de Mirabelle.
ü  Quando a amiga pergunta a Ray se ele está apaixonado.
ü  Ray fazendo terapia com um possível psicanalista (que não aparece o rosto) e ela fazendo “terapia” na mesa, com as colegas. Falam do mesmo assunto, mas sob perspectivas opostas.
ü  Ray surpreso ao achar que, mesmo revelando sua traição, tudo ficaria bem.
ü  Jeremy confessando que foi Mirabelle quem o fez mudar.
ü  Mirabelle ao compreender o lamento de Ray em ter amado ela daquela forma.
ü  O presente (sua obra) que Mirabelle dá para Ray, como símbolo do elo que sempre haverá entre eles.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Minhas tardes com Margueritte, de Jean Becker


Há filmes pra todos os gostos, pra todas as horas... E pra todo tipo de experiência!

Se o seu coração já se abriu em flor, ou pelo menos teve um vislumbre do que é isso – é dizer – se já experimentou o prazer de vivenciar um amor sadio (que redundância! Se é amor, é sadio! Há quem chame de amor o apego, o medo, a conveniência...), aquele que surge despretensioso, sem exigências e cobranças, sem propósito, sem conceitos, que quando se vê, já é, pleno, forte, firme, profundo e leve, então vai reconhecer a semelhança nessa obra cinematográfica, nessa linda história, nesse encontro entre Margueritte (Gisèle Casadesus) e Germain (Gérard Depardieu). Podemos também chamá-los de “A borboleta” e o “Ogro”, ou ainda “A leveza” e o “Profundo”. Duas faces do Amor, expressas na polaridade desses dois personagens.

           Margueritte representa a fragilidade e a leveza desse sentimento. Germain, a fortaleza (cresceu sem demonstração de carinho, e se tornou a mais pura fonte do amor que lhe faltou).

          Fora isso, essa história nos mostra a beleza dessa totalidade em si mesmos: Margueritte é frágil, porém durável e resistente, tanto pela sua idade cronológica, quanto pela vida altruísta que levou. Já Germain, forte, tosco, mas também uma pluma, levinha e polvorosa, a pousar graciosa nos ombros dos amigos, vizinhos e namorada que o cercam.

      Margueritte tem os livros como sua expressão, representando sua capacidade imaginativa, intelectual e mental. Já Germain, tem seu jardim, representando sua conexão com a terra, o mundo vegetal, não das ideias, mas do sentir, onde o pulsar da vida, a força vital, o “chi”, latente, é mais forte que a expressão extrospectiva da mente intelectualizada, quase exibida.

          A beleza dessa história está no ENCONTRO e na troca que dela surge. Só compartilham o que têm de melhor, porque é só isso que sabem doar. Um livro (uma leitura) em troca de uma caixa de verduras frescas e naturais. A MENTE (neste caso, situada em seu devido lugar) em uma conversa amistosa e harmoniosa com o CORAÇÃO. Como numa dança, que no seu rodopio intenso, se torna um vulto único de partes inseparáveis, formando um TODO.

      Vale aqui uma observação relevante: a beleza de nosso “Ogro” estaria em sua ignorância, ou no seu pouco avanço intelectual? Bem, não o vi como um ser de inteligência limitada, talvez um engano daqueles que se acham espertos (fica aqui uma recomendação: leiam “Das vantagens de ser bobo” de Clarice Lispector. Imperdível!). O filme mostra um bloqueio criado na infância, uma crença tola de que ele era limitado, consequência de sua falta de sorte em ter um professor insensível (um tipo grave de limitação), incapaz de farejar o caos que esta criança vivia em casa, e as situações de humilhação que sua mãe e seus parceiros amorosos o submetiam, o que fazia ele se recolher ainda mais, criando um complexo de inferioridade, uma baixa estima, uma crença equivocada de que ele era burro. A riqueza cognitiva que ele demonstra durante as leituras de Margueritte nos mostra um homem acima da média no quesito “enxergar alguns palmos à frente do nariz”.

         É verdade que a ignorância na vida de Germain lhe impõe limitações, um desfrute reduzido da vida. Se lhe poupa dissabores, igualmente lhe rouba a delícia do entendimento pleno. Com a ajuda de sua amiga anciã, ele rompe lentamente esse véu da ignorância, e um mundo começa a se descortinar diante dos seus “olhos”. Veja sua alegria ao descobrir que seu amigo Jojo “the cook” é assim chamado porque cook significa cozinheiro, ou quando ele descobre palavras novas num velho dicionário. É um processo que lhe dói (veja quando ele resolve devolver o dicionário à sua antiga dona), mas que não tem volta, porque também lhe abre horizontes, lhe expande a consciência.


         Isso não deixa de ser uma grande lição, nos mostrando o que é o “caminho do meio” (nem uma apologia ao "saber viver” do homem simples e ignorante que vive à margem da sociedade, nem a crença estúpida de que, quanto mais instrução, mais sábios seremos).

      É no RELACIONAR-SE que se dá a completude. Ouvi uma vez que “Nós nos curamos no ENCONTRO. Ninguém cura ninguém. Ninguém transforma ninguém. Ninguém se cura sozinho”. De certa forma, entre Margueritte e Germain se dá um casamento, de alma, é certo! Mas um casamento. Onde um mais um não são dois. Onde se experimenta a trindade. Saem ambos modificados, potencializados, mais plenos. Onde a luz de um, ilumina a sombra do outro. O que falta em nosso Ogro, é o que sobra em nossa Borboleta – conhecimento! O que falta à Margueritte, é o dom maior de Germain (o cuidado, a amizade verdadeira e desinteressada). Veja: um lê, o outro escuta. Simples assim!


        Se você acha que eu estou viajando (risos), assista ao filme.

        Que esse release te caia como um convite para viver alguns minutos de doçura e leveza, em tela!

        Acrescento aqui alguns detalhes que não seriam legais passarem despercebidos:


ü  “... eu nasci de uma história de amor, como todo mundo” (Margueritte); “Não! Tem gente que nasce de um erro” (Germain);

ü  “Entre eu e minha mãe, a distância está na cabeça” (Germain);

ü  “Escutar bem é também ler” (Margueritte);

ü  “Não é bom ser tão amado numa idade tão tenra. Isso cria maus hábitos. Nós ansiamos, esperamos, criamos expectativas. Com o amor materno, a vida nos faz, na aurora, uma promessa que não se cumpre. (...) Depois, cada vez que uma mulher toma você nos braços e o aperta junto ao peito, são apenas condolências. Voltamos sempre para uivar sobre o túmulo de nossa mãe, como um cão abandonado” (Leitura de Margueritte sobre o livro de Romain Gary “A promessa da aurora”);

ü  Se uma criança não recebe amor na infância, terá que aprender mais tarde, não?” (Margueritte);

ü  “Minha vista está morrendo. Não se opera a morte” (Margueritte);


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Foi apenas um sonho (Revolutionary Road), 2008 - Direção: Sam Mendes





Esse filme toca em uma frustração muito comum, porém muito camuflada: a de se conformar, de se moldar, de atender um modelo de vida padrão e medíocre, que se conforma em nascer, crescer, trabalhar, casar, ter filhos, casa própria, envelhecer e morrer – tudo isso sem muitos riscos, sem grandes entusiasmos, sem tesão, sem DHARMA. A frustração de calar uma voz interior que anuncia, grita, exige que a vida seja mais que isso, que proclama que ela é única, que não tem receita, que a nossa felicidade provavelmente está nessa busca que nos faz expandir a partir da vivência de nossas potencialidades. Ouvi-la pode ser um incômodo e, às vezes, preferimos acreditar nada acontecer. Mas, se a ouvimos tão intensa e desesperadamente, é preciso CORAGEM para segui-la.

April e Frank formam o típico casal aparentemente perfeito, classe média dos anos 50. Tudo parece correr como deveria, porém logo April perceberá que não se sente feliz. Ela não se conforma em viver pela metade, uma vida opaca. Quer seguir essa voz interior, pois se sente infeliz ao abafá-la. Vê, como em um espelho, seu marido fazendo o mesmo: desperdiçando a potencialidade de seu ser. Como uma criança que esperneia, grita, se debate revoltada diante do castigo que lhe é imposto, ela luta em sair desse espetáculo maçante que encena uma família americana padrão. No afã de escapar dessa armadilha social, April acredita que a solução está fora – uma mudança de país, deixando pra trás casa própria, trabalho medíocre, vizinhos curiosos, nação. Convence o marido, Frank, que em Paris serão felizes, realizarão seus sonhos juvenis.

Vivendo essa ilusão, cuja solução se resume em mudar de “ares”, vivem dias de extremo entusiasmo com os preparativos: anúncio de demissão no trabalho, aquisição de passagens aéreas, preparação dos filhos, despedida dos vizinhos. Tudo isso gera uma inveja alheia (entre vizinhos e colegas de trabalho), pois deixam pistas evidentes de que todos sofrem da mesma doença, a NORMOSE * (patologia da normalidade).

A vida então flui deliciosamente até que começa a se manifestar a “corrente do medo”, o boicote, que nos faz vacilar, nos faz tremer e duvidar de, até que ponto queremos nos atirar rumo ao desconhecido e sem garantias. Isso nos lembra a Jornada do Herói, de Joseph Campbell – o chamado, as provações, a superação e a conquista de um novo e mais amplo estágio de consciência. Pena que nessa história os personagens principais não superam as “ilusórias” provações.

Uma tentadora proposta de promoção no trabalho e uma gravidez acidental serão, nesta história, as “provações” que terão que superar. Desculpas inconscientes para justificar uma acomodação vergonhosa (afinal, já se reconheceu a voz interior) e sem riscos a uma vida sem graça e previsível. É o preço que se paga por não lutar pela felicidade.

Mas até aqui não há nada de tão incomum ou espetacular que fizesse desse filme uma obra marcante, a não ser a atuação brilhante de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet.

O que torna esse filme um cinco estrelas, digno de entrar para a lista dos melhores filmes de todos os tempos, é a forma como é deflagrada toda essa trama inconsciente de boicote à possibilidade de ser feliz – a aparição daquele que vai apontar de forma transparente e lúcida o mundo de ilusões em que os personagens estão imersos. Esse papel caberá a John, o filho “louco” dos antigos proprietários da residência do casal principal, que acaba de sair de uma clínica de recuperação. Em uma cena brilhante que se dá em volta da mesa de jantar dos Wheeler, John, com seu total descompromisso em atender os padrões de comportamento social, curado da normose que nos priva de viver a autenticidade de nosso ser, é o responsável por desvelar o boicote no qual o casal está se infligindo.  É o responsável por deflagrar o pseudo impedimento que uma gravidez não planejada pode ser para a mudança tão desejada quanto temida. Nesse caso, o “louco” é aquele com o dedo em riste, apontando ao casal seus medos, suas fraquezas, que seus fantasmas não passam de uma sombra de si mesmos. Vai além, mostrando também a frustração e a raiva contidas que cada um carrega ao projeta-las no parceiro, num jogo vicioso de culpar o outro por sua própria infelicidade. Isso fica claro já numa das primeiras cenas do filme, quando o casal está voltando de carro pra casa após uma estréia teatral infeliz de April nos palcos. Vê-se claramente uma estratégia comum entre os casais, mas pouco eficaz, em que um tenta fazer o outro se sentir culpado, na expectativa infantil de ter sua própria dor amenizada. John personifica o grande intruso, inconveniente, que ao desfazer os nós que justificam a inércia dos Wheeler, gera mal estar e desconforto.

Esse acontecimento sela uma situação que não tem volta. Coloca o casal em uma encruzilhada: ou se ajusta/aperta mais a máscara de casal perfeito e realizado, classe média, conformado; ou se abre definitivamente para a força vital do coração, que empodera o ser e o impele a buscar corajosamente sua felicidade.


Infelizmente Frank se acovarda, se acomoda, se esconde no papel que lhe é familiar e seguro. Já April, parece apenas prorrogar o grande dia. Parece decidida a “preparar o terreno” para a esperada mudança que virá a médio prazo. Digo, parece, porque tenta solucionar o “problema” da gravidez se arriscando num aborto solitário e domiciliar. Infelizmente sua história é interrompida com o agravamento do procedimento abortivo que a leva à morte. Triste fim. Uma jornada interrompida e dolorosa.  Porém, dor maior de todas é aquela de Frank. Uma dor por não tentar, por se conformar, por fingir não perceber o que nunca esteve sanado – a ferida aberta. Uma dor que não vislumbra o seu fim. A dor do QUASE, do chegar perto e recuar. A dor de ser FRACO.