terça-feira, 29 de julho de 2014

Sobre “Ela” (filme de Spike Jonze, 2013)


Há algum tempo que estou com esse filme martelando em minha cabeça. Uma vontade danada de escrever sobre ele, de registrar e compartilhar minhas impressões. Talvez esse tempo entre assistir ao filme e escrever sobre ele seja bom, pois as ideias vão se assentando e ficando apenas aquilo que foi mais significativo – o essencial. Falar sobre o essencial – seja lá do que for - me parece algo interessante. Não sobra muito para especulações. Então, vamos lá!

Bem, “Ela” é um daqueles filmes nada (in) críveis, mas que te prende a atenção do início ao fim. Para mim, e talvez só para mim, é um filme que fala sobre a materialidade das coisas, inclusive dos sentimentos, e a densidade intrínseca a ela. Claro que aqui estamos falando de uma matéria muito mais sutil – o sentimento. Mas é sobre esse ponto de vista que o sentimento é abordado.

No filme, o personagem principal se apaixona pela voz de um sistema operacional. E é essa ausência de corpo, de imagem pré-definida que nossos olhos captam e nossa mente imediatamente julga, que permite um lapso, um “gap”, uma brecha, um “time” para a dança livre da imaginação humana. E claro, se falamos de nossa particular capacidade de imaginar, tocamos em nosso potencial criativo que, por sua vez, vai se alimentar de nossas crenças, sejam elas particulares ou coletivas.

A falta de um corpo físico para se tocar, se cheirar, se lamber, se olhar, (não digo ouvir, porque é o que resta ao personagem principal), enfim, essa pouca densidade para se reconhecer com todos os nossos sentidos e gerar nossas emoções, dá espaço (ou dá um salto) para o SENTIR, para o despertar do amor.
Não é à toa que a tentativa de materializar esse ser amado, contratando uma garota “real” para representar o objeto de amor, é um fracasso, pois a beleza, o fundamento daquele amor está justamente nessa escassez de materialidade (só lhe resta uma voz). Trata-se de amar o próprio ato de amar, trata-se de não dispersar energia com preocupações e julgamentos acerca do superficial, do efêmero. Não se ama o outro, se ama o próprio ato de amar, se ama aquilo que nos falta, ou melhor, aquilo que não reconhecemos em nós, aquilo de que somos feitos e não sabemos. Se ama porque se é amor (embora não se saiba amor).

Esse filme sinaliza o que é óbvio para poucos e desconhecido para muitos: que o que vemos e vivemos - aquilo que nos é externo – é uma interpretação particular a partir daquilo que somos intimamente. É dizer, não importa o outro, importa como eu vou ao encontro desse outro, como eu o codifico / interpreto/ reconheço. Nos mostra que o amor nasce e morre no próprio amante, às vezes impulsionado pela sua carência (“mala suerte” de muitos), às vezes pela sua abundância (sorte de poucos).

O frescor, a leveza do amor que se mostra nesse filme pode ter muitas explicações, mas certamente, a escassez de matéria é uma delas. Essa “falta” não deixa brecha para o julgar (ela é feia, ela é bonita, ela é gostosa, ela é gorda, ela é magra, ela tem bom gosto, ela parece isso, parece aquilo, ela tem bom emprego...) e fica-se na essência do que é dito e sentido, fica-se mais próximo ao conteúdo das coisas, sobra atenção para observar o que se passa por dentro de si. Sobra atenção para se perceber os poros dilatando, os pulmões inflando, a consciência expandindo. Sim, a Consciência, afinal, esse amor nos leva para o ponto do observador, que vê panoramicamente e que é capaz de rir da constatação de que se está falando com um sistema operacional. Loucura? Claro! Que delícia de loucura! É a própria vida pulsando. O completo descompromisso com a racionalidade. O racional dando espaço para a imaginação, sabendo-se que é ela própria a senda para o amor.

É quando entra o outro, ou os outros, com seus respectivos corpos/pesos (afinal ele descobre que centenas de milhares de pessoas estão simultaneamente se relacionando com sua Samantha – a voz do sistema operacional) que a coisa toda começa a minguar. O foco desloca para fora, quando o personagem principal se dá conta que “aquilo” que ele julgava ter, possuir, não é só dele, não se passa apenas com ele, que ele não é o centro do mundo, o filho único de Deus.  É ai que o outro, o que está fora, entra. O outro lhe toma espaço, parece lhe subtrair aquilo que estava dentro. É o outro nos trazendo para a “realidade”. Não é mais possível rir da irracionalidade aparente de se apaixonar por um sistema de informática. Perde-se o humor, perde-se o amor. Não há mais espaço para a imaginação.

É o outro mostrando o nosso limite, a nossa borda. Agora um “outro” mais real, mais denso, não apenas uma voz. Aí a coisa fica um pouco mais complicada. É mais difícil amar todas essas “vozes”. Ora, até então a voz única e amada não tinha sido capaz de estabelecer esse limite. Ela (a voz) era quase uma extensão do amante. Amante e amado - uma coisa só! É quando se fragmenta que a coisa desanda. É essa materialidade, percebida fragmentada (eu, você) que nos leva a um amor limitado, egoísta, diminuto, onde um só ganha quando o outro perde, onde o sonho do outro não pode coexistir com o nosso.


Esse filme fala dessa fragmentação, dessa ilusão decorrente da nossa percepção limitada da matéria, da imaginação e criatividade humanas, da nossa forma às vezes capenga, às vezes sublime de amar.