quinta-feira, 14 de agosto de 2014

“Civilidade é o que lhe impede de chegar ao sentimento”

Sobre o filme “Pedalando com Molière” (“Alceste à bicyclette”)
Filme de Philippe Le Guay - 2013

Um respeitado ator chamado Serge Tanneur, desiludido com o superficial e dissimulado mundo artístico, decide abandonar os palcos e se isolar na Ilha de Ré, uma pequena ilha francesa situada no Golfo da Biscaia, na região de Poitou-Charentes.

Sua pacata rotina é interrompida com a visita aparentemente despretensiosa de Gauthier Valence, ator de televisão popular, muito assediado pela mídia e fãs. Gauthier o convida a, juntos, montarem uma adaptação de O Misantropo, de Molière. Serge lhe propõe o desafio de ambos ensaiarem a primeira cena da peça, nos papéis de Philinte e Alceste, e só depois de cinco dias de ensaio, dar uma resposta sobre sua participação. Gauthier aceita o desafio e então, os jogos de poder e manipulação manifestos no texto teatral começam a ser “metaforeados” pela luta de egos entre esses dois artistas.

Esta seria uma boa sinopse da obra cinematográfica. Todavia, proponho ainda outra, mais adequada à proposta inicial deste blog. Seria assim: trata-se do confronto de duas máscaras - a do “bom moço, bem adaptado” e a do “rebelde incompreendido” que, uma vez polarizados e confrontados, têm a oportunidade de caminharem rumo ao centro dessa grande linha que é a auto realização, onde as máscaras já não nos causam dores e infelicidades.

Perdoem-me leitores a antecipação do final, mas... Preciso dizer que isso não vai acontecer, afinal é um processo muito doloroso no qual exige coragem. Acabam ambos, por fim, reforçando ainda mais suas máscaras e cerrando as portas que poderiam leva-los a descoberta do que está incomodamente encoberto.

O primeiro personagem, Gauthier, é um sujeito evidentemente vaidoso, que está disposto a pagar, com sua falta de privacidade e tempo, pela imagem de bom moço, queridinho do público, o artista bem sucedido. Essa máscara, de pessoa bem educada, acessível, gentil, galanteador, lhe rende caches vultosos como ator de série de TV. Sempre “bem intencionado”, sai à procura, inconscientemente, do antídoto que vai lhe fazer confrontar com sua própria sombra, aquilo que ele não ousa enxergar, o antigo colega de palco, o tarimbado ator Serge Tanneur. Aparentemente desprentencioso, Gauthier chega à casa do colega como quem nada quer: “Estava passando e...”. Serge, desconfiado, esperto, deixa o tempo rolar até ver onde o inesperado visitante pretende chegar. Não tarda muito para Gauthier revelar sua intenção em propor a remontagem da adaptação de Molière. Serge, calejado do efeito devastador que tem “as segundas intenções humanas”, homem safo, entra no jogo de manipulação e promete dar-lhe uma resposta só ao cabo de 5 dias de ensaio. Gauthier suspeita do início da “partida”, porém, sedento e refém de seu próprio plano, aceita a condição à contragosto, já desconfiando vítima de sua própria presa.

Boa parte do filme acontece no desenrolar dos ensaios e estes são os momentos mais férteis do filme, uma vez que se instala um grande “palco” (ou arena!) para o duelo de egos, onde peça escrita e realidade se confundem graças à semelhança entre os personagens da ficção e os reais: Alceste e Fhilinto; Serge e Gauthier.

Gauthier, em seu aspecto falseado, ao se confrontar com o autêntico Serge (autêntico, mas talvez igualmente infeliz) sente, a cada ensaio, a pressão de seu ser mais íntimo, ansioso por ser revelado em sua essência, em mostrar o que realmente lhe “cae bien”, mas que sua energia direcionada ao pesado papel de bom moço lhe impede de experimentar. Até que chega aquele momento inevitável, e tão esperado, de explosão, onde sua pesada máscara deixa brecha para revelar um homem medroso, impotente e incompleto. E isso vem à tona em um momento de fúria provocada pelo ato recorrente de seu colega em corrigi-lo por mitigar uma palavra de sua fala teatral. Serge lhe alerta que “Gritar não é poderoso” e que sua civilidade é o que lhe impede de chegar ao sentimento.

Quanto ao Serge, é possível dizer que no fundo ele se julga uma vítima do sistema, quase como uma criança que se sente incompreendida. Julga-se tão diferente e especial, que não lhe convém viver entre os normais imorais. É um pária social, um incompreendido e desiludido com a humanidade. Se julga muito autêntico e leal, vítima de uma sociedade corrompida e fútil. Talvez por essa razão não deseje colocar mais uma criança nesse mundo e quer se submeter a uma vasectomia.

Até que entra em cena Francesca, uma linda italiana recém separada, que passa por um momento de profunda dor. Francesca e Serge compartilham da mesma amargura e não tardarão em descobrir afinidades já no segundo encontro, quando ela lhe oferece uma carona, por acaso, justamente na hora em que Serge espera por um transporte público que lhe levará rumo ao hospital, onde se submeterá à tal vasectomia. É neste momento, dentro do carro, que o cupido lança suas flechas em direção ao coração de ambos e, neste instante de afrouxamento das amarras que só o amor é capaz de provocar, que ambos comungam juntos uma bela música italiana – Il Mondo. O Serge que chega ao hospital já não é o mesmo que saiu de casa naquela manhã. Esse novo Serge vê um quê de esperança na humanidade. Para ele, essa falta de esperança, simbolizada pelo ato de se vasectomizar, já não faz sentido. Serge foge, literalmente, da mesa de cirurgia. Este rasgo de felicidade, que faz tudo vibrar e se iluminar, não tardará em desaparecer pois, se é verdade que atraímos aquilo que cremos profundamente, se é verdade que muitas vezes nos boicotamos ao não reconhecer nossa vocação primeira para o amor e em sermos a própria felicidade, Serge novamente irá se decepcionar, e recuará à sua redoma, talvez agora mais estreita, mais apertada, mais sufocante, porém um lugar sem riscos e já conhecido. Na última cena do filme temos de volta aquele homem rijo, e talvez, ainda mais amargo.

Vale aqui minha reflexão final: Serge, tal qual Gauthier, expressa uma grande vaidade, todavia sob o viés da rebeldia, da intolerância e não pactuação com uma sociedade vil. Lembre-se, logo no início ele se auto define a partir de um comentário sobre o problema do mau cheiro vindo da fossa em seu quintal: “Não gosto de ser conectado. Gosto de ser independente”.


Sob a ótica de quem busca algo mais, o filme tateia um inconsciente ávido por se fazer revelado, com personagens que sugerem a vasta dimensão da qual somos feitos e, “desbaratinadamente”, não nos damos conta.