quinta-feira, 9 de abril de 2015

Garota da vitrine

Filme de Anand Tucker , de 2005, baseado no libro Shopgirl de Steve Martin



“Certas noites, sozinho, ele pensa nela. E certas noites, sozinha, ela pensa nele. Certas noites, isso acontece ao mesmo tempo, e Ray e Mirabelle se relacionam sem saber.

Começo o artigo batendo palmas, fazendo barulho, dando pulinhos e gritando “assistam!”, “assistam!”, “assistam!”
Se pudesse, com a ajuda de uma varinha de condão, colocaria todos diante de uma grande tela e passaria esse filme, como uma anfitriã que, ao receber seus convidados especiais, oferece uma sobremesa exótica e desconhecida, esperando que eles desfrutem de seu raríssimo sabor.
Sim, gostaria profundamente que esse filme ocupasse todas as salas de cinema comerciais para que todos pudessem compreender como atraímos aquilo que mais tememos - SOFRER; Como todos os mecanismos e estratégias de proteção e autodefesa de uma POSSÍVEL dor (advinda do medo de perder algo precioso) nos garante, mais cedo ou mais tarde, uma dor ainda pior – aquela que, por não ser enfrentada, por não ser dilacerante e pontual, se faz presente rotineiramente, em doses homeopáticas, camuflada, tornando nossos dias mais opacos, menos alegres, apáticos, mornos, controlados, confirmando a perda tão temida, que talvez, se não fosse o temor, POSSIVELMENTE nem aconteceria.

Vamos aos nossos personagens.

Mirabelle – o arquétipo do sublime, o objeto do desejo, o ideal a ser alcançado, o simples (aqui no sentido do fundamental, indivisível, essencial, que não carece acréscimos). Uma artista plástica principiante, que financiou seus estudos, saiu da pacata Vermont e foi tentar a vida em Los Angeles. Trabalha vendendo luvas numa grande loja de departamento e, esporadicamente, por meio de um marchand, vende seus trabalhos artísticos. É doce, de um sorriso meigo e transparente, ligeiramente deprê, que na intimidade, é capaz de contrapor sua aparente pacatez, com gestos audaciosos e surpreendentes. Uma mulher diferente da maioria das mulheres.
Jeremy – o arquétipo do trapalhão, do bobo, sem futuro. Tipógrafo e vendedor de amplificadores, é um rapaz desajustado, sem eixo, sem grana, que conhece Mirabelle numa lavanderia e, já a partir dos primeiros contatos, se sente motivado a se transformar para ser o escolhido de Mirabelle. DEStemido.
Ray Porter – o arquétipo do homem bem sucedido. Empresário rico, solteiro, meia idade, que busca uma relação que não lhe traga riscos (de mudar, de sofrer, de sair de sua zona de conforto - indolor). Busca uma relação que não lhe tire a garantia de um chão firme e conhecido. Nem por isso insensível. Com uma lupa, podemos perceber um homem com grande sede e capacidade de amar e cuidar, porém muito temeroso de se entregar. Faz terapia e presa pela sinceridade em suas relações. Pena que não consegue estabelecer a mesma sinceridade com ele próprio!

Vamos ao enredo.

O maduro Ray se encanta pela jovem e simples vendedora de luvas e dá início à conquista de sua atenção, porém deixando claro, logo no 1º encontro, que não busca uma relação permanente e exclusiva. Mirabelle, carente de amor, não só corresponde, como aceita sua proposta, pois acredita que não tem muito a perder, além de não enxergar nada suspeito no sujeito grisalho, enigmático, de olhar penetrante e atento. Aceita um convite para jantar que dará início a uma relação gostosa, leve e acolhedora (vide o cuidado dele com ela quando, ao deixar de tomar seus antidepressivos, ela tem uma recaída). Ray nem sempre consegue sustentar sua proposta de relacionamento superficial, e, por vezes, deixa escapar suas intenções mais profundas ao fazer planos a médio prazo como, por exemplo, uma futura viagem a NY ou a comemoração do aniversário de Mirabelle no ano seguinte. Escapes que alimentam silenciosamente, na esperançosa mocinha, a possibilidade de uma relação duradoura e mais profunda. Mirabelle abre seu coração, deixa esse amor ocupar todo o espaço disponível, com cuidado devido, é certo!, mas sem meio termos. Com uma verdade profunda. Tantos gestos de cuidado e atenção sinalizam um sentimento elevado entre ambos, de amor e legítimo interesse em comungar a vida.
Enquanto isso (na sala de justiça) o despirocado Jeremy, à convite de uma banda de rock para acompanhar uma turnê que durará alguns meses, começa a trilhar um caminho de autoconhecimento, centramento e compreensão acerca das viabilidades de uma relação amorosa. Tudo isso motivado pelo seu encantamento por Mirabelle. Vale destacar que Jeremy é um ser completamente flexível, aberto às transformações, ao crescimento, à exploração, sem muitos traumas, quase uma folha em branco que se coloca disponível para uma história de amor.
Tudo corre bem na relação entre Ray e Mirabelle e, embora não se fale em amor, é possível percebê-lo em cada gesto e olhar. Até o dia em que Ray trai Mirabelle ficando com uma conhecida. Trai como quem cava um motivo qualquer, porém infalível, para estragar (ou testar) a relação. É dizer, sobre uma abordagem mais profunda - trai, não Mirabelle, mas o seu sentimento por ela. Sem coragem para lhe contar verbalmente sobre sua traição, garante tal confissão com uma carta que entrega pessoalmente a ela. Eu particularmente suspeito que tal traição foi um teste de Ray, porque no fundo ele não acreditava que Mirabelle o abandonaria. Queria mesmo testar se estavam conseguindo manter uma relação aberta. Para sua surpresa Mirabelle sofre muito e o abandona.
Mas Ray não consegue sustentar esse rompimento e procura Mirabelle na tentativa de reatarem. Após um tempo distantes acabam voltando e resgatando o frescor da relação. Interessante como não será a traição o motivo da separação definitiva, mas sim uma provocação “quase inconsciente” de Ray ao dizer, num tom entre a displicência e a brincadeira, que arrumou um apartamento em NY para, quem sabe, o dia em que ele encontrar alguém, casar e tiver filhos. É nesse instante que Mirabelle se dá conta, com clareza, da situação que está vivendo, da falta de perspectiva. Sabe que não sustentará isso por muito tempo e que, mais cedo ou mais tarde, vai sofrer pelo rompimento. A corajosa Mirabelle não adia nem dissimula a dor à espreita, e decide então colocar um fim definitivo na relação.
Ambos vivem momentos de luto, mas não um mesmo tipo de luto. Mirabelle foi verdadeira, se arriscou, não poupou, não criou autodefesas vãs. Se expôs, sem orgulho e corajosamente. Ao ir fundo em direção à inevitável dor, pode emergir revigorada e leve, como quem salta num lago profundo e ao tocar os pés no seu fundo, num impulso forte e decidido se projeta em direção à sua superfície. Os dias sombrios se vão e, aos poucos, com a ajuda da sua arte, consegue virar a última página de um capítulo de sua vida chamado Ray.
Já o luto de Ray é um processo mais lento e difuso, bem provável, de uma vida toda. Luto de quem não viveu plenamente, não se arriscou, não se entregou, de quem chegou até à borda de uma piscina em um dia ensolarado e quente e só molhou as pontas dos pés. Sofreu então a tão temida e tão evitada dor. Sentiu o quão é vão se proteger do Amor, afinal, Ele sempre nos vence, seja se fazendo presente e nos consumindo todo, primeiro em euforia e exaltação, mais tarde em suavidade e ternura, seja nos abandonando e nos deixando sós, secos e sem sentido.
Quando se olha de uma certa distância para vida, para um tempo remoto, ela parece mesmo orquestrada, um espetáculo onde cada ato está devidamente amarrado ao outro. Digo isso porque, é nesse distanciamento quântico entre Mirabelle e Ray que ressurge Jeremy, chegado de um longo período sabático, podemos dizer. Ambos mudaram muito nestes 14 meses transcorridos, não estão mais no mesmo ponto onde se conheceram. Jeremy agora está mais centrado (menos perdido), mas igualmente disposto a conquistar Mirabelle, afinal, foi ela a grande motivação dessa transformação. Mirabelle continua carente e solitária, tanto quanto todos os personagens dessa história, mas muito mais fortalecida. Cresceu, amadureceu e parece agora ela mesma pintar os seus dias, sem depender de terceiros. Por isso, desta vez, é capaz de olhar para Jeremy de uma forma muito mais profunda. É ela agora quem bota cor e sentido em tudo que vive e que vê. Decide “ver” Jeremy, com suas potencialidades, sua leveza, sua abertura e destemor para o viver. Sente a reciprocidade do seu amor, e isso lhe faz feliz.

"Mas Mirabelle, sentindo a reciprocidade do seu amor pela primeira vez, afasta-se dele (de Ray), e enquanto Jeremy oferece ainda mais seu coração, Mirabelle retribui na mesma medida. (...) Assim, Jeremy supera Ray Porter como amante de Mirabelle, pois o que ele oferece a ela é terno e verdadeiro. (...)"

De sua parte, Ray toca sua vida, como antes de conhecer Mirabelle.
O último encontro entre ambos é de uma beleza ímpar. Temos um quadro nítido do que podemos fazer com a nossa vida. Podemos dar valor a esse presente da vida, que é amar, e fazê-lo florescer, ou podemos, por medo, deixa-lo minguar, guardado pra sempre em uma caixinha no fundo do armário. Nesse último encontro Ray se dá conta do que perdeu por medo de perder.

“Ao ver Mirabelle se afastar, Ray Porter sentiu uma perda. Como é possível, pensou ele, sofrer por uma mulher que manteve à distância para não sentir falta dela quando ela fosse embora? Só então percebeu o quanto querer só uma parte dela fez os dois sofrerem. E como não podia justificar seus atos, exceto por, “Bem... A vida é assim.”

Detalhes a serem observados:

ü  A pergunta silenciosa de Mirabelle: “Por que eu?”
ü  A observação de Mirabelle de que nada em Ray parecia suspeito.
ü  Ray ao tirar o relógio do pulso de Mirabelle diz: “Agora eu sou o seu relógio”
ü  Na primeira vez que vai à casa de Ray, ela o espera nua sobre sua cama.
ü  Ray sempre esperando por Mirabelle na porta de sua casa.
ü  O cuidado de Ray quando Mirabelle fica depressiva.
ü  O tom verde que sobressai da casa de Mirabelle.
ü  Quando a amiga pergunta a Ray se ele está apaixonado.
ü  Ray fazendo terapia com um possível psicanalista (que não aparece o rosto) e ela fazendo “terapia” na mesa, com as colegas. Falam do mesmo assunto, mas sob perspectivas opostas.
ü  Ray surpreso ao achar que, mesmo revelando sua traição, tudo ficaria bem.
ü  Jeremy confessando que foi Mirabelle quem o fez mudar.
ü  Mirabelle ao compreender o lamento de Ray em ter amado ela daquela forma.
ü  O presente (sua obra) que Mirabelle dá para Ray, como símbolo do elo que sempre haverá entre eles.