quarta-feira, 29 de maio de 2019

Girl


Filme belga de 2018, dirigido por Lukas Dhont.
Indicado ao Prêmio Globo de Ouro: Melhor Filme Estrangeiro  

Questionei-me se deveria escrever sobre um filme que fala do universo transgênero, uma vez que não estou tão familiarizada com estas questões. Todavia, o filme me foi tão tocante, que resolvi arriscar priorizando os pontos que me sensibilizaram e despertaram o interesse em divulgá-lo.

Girl conta a história de uma adolescente belga, Lara, que aguarda ansiosa pela operação de troca de sexo. O respeito e a quase naturalidade da transexualidade de Lara em seu contexto familiar e social são chocantes para países como o nosso, principalmente para o Brasil que continua em primeiro lugar no ranking dos países que mais matam transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU). Esse dado me dispensa desvelar a falaciosa crença brasileira de que somos um povo sem preconceitos e tolerante – duas qualidades que, a meu ver, só podem surgir, legitimamente, em sociedades minimamente instruídas e em culturas conectadas com sua natureza. Definitivamente, e lamentavelmente, não é o nosso caso.

Mas não quero continuar nesse rumo, pois careço de (in)formação, além de perder a oportunidade de me deleitar com aquilo que mais gosto - refletir sobre aquele “não sei o quê” que me toca a alma em momentos de distração cinematográfica.

Logo nos primeiros minutos percebemos Lara numa ansiedade contida, contando as horas para acabar definitivamente com qualquer resquício que possa lembrá-la que nasceu em um corpo, cujo gênero não corresponde à sua pessoa. Ela vive a totalidade da puberdade, com seus conflitos e exigências de aparentar ser o que já se é e não se sabe. Não sou transgênero, mas sou mulher e sei, por experiência, que ainda adolescente, com todos os meus hormônios em festa, sentia uma necessidade hercúlea de afirmar minha feminilidade com tudo que eu entendia como tal. Com Lara, naturalmente, não foi diferente.

Gosto muito de uma frase do Deepak Chopra que diz: “Toda semente traz em si a promessa de muitas florestas”. Aos 7 minutos de filme, o doce e presente terapeuta de Lara resume todo o processo psicológico que ela passa ao dizer: “_ mas você já é tudo o que será”, na intenção de acalmá-la, de desapressá-la, de ilustrar que tudo, absolutamente tudo, tem seu tempo. É que a semente é a floresta. Basta-lhe o tempo da manifestação. E não é assim que a vida se dá? Quem nunca fez uma pausa em Eclesiastes 3?

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; ...”


É possível que eu desaponte muitos que vêm no filme uma bandeira sobre as questões de gênero e do feminismo. Peço que me perdoem o recorte, mas é que a minha conexão se deu para além dessas questões – me interessou aqui o indivíduo em si mesmo. Apesar da dedicada e preparada equipe médica e psicológica que acompanha Lara, do apoio amoroso e incondicional do pai, da compreensão dos familiares, da aceitação razoável nas esferas sociais em que Lara convive, o conflito interno está ali – como prova do imanente em nós. A cena urbana de Lara em meio à multidão; um pontinho entre tantos; um conflito entre tantos outros – uma multidão de iguais em suas diversidades.  Tão belo!

Em um momento de esgotamento psicológico, numa conversa franca com seu pai, ele tenta motivá-la, reanimá-la, aprumá-la, mostrando como ela é um exemplo de coragem para tantas outras mulheres trans. Lara responde, “Não quero ser exemplo. Só quero ser uma garota”. Portanto, não serei eu, nesse insignificante post, que levarei essa história que pretende apenas ser a história de uma adolescente trans. Simples assim, em sua complexidade.

Como deixar de falar de sua relação obstinada com a dança? Tenho alma bailarina!

É na dança clássica que ela acaricia e afaga seu lado mais feminino, embora desde o primeiro minuto o filme nos mostre sua alma feminina se expressando no cuidado com o irmão caçula, na habilidade de administrar as atividades domésticas compartilhadas com o pai. É em seus árduos treinos que ela testa sua capacidade de superar limites. É no apoio dedicado e fiel de sua professora de dança que ela encontra o apoio para persistir. É no seu grupo de colegas bailarinas que sua verdade é colocada em xeque. É o suor que começa a molhar seu collant nos revelando, gradativamente, a transformação da pedra em ouro. Que alquimia maravilhosa! A última cena do filme nos dá um vislumbre futuro da linda mulher que se desvelou.

As falhas técnicas do filme, sua precária filmagem nas cenas de dança que, por vezes, nos deixa meio zonzos, as reflexões sobre as minorias que o filme pode e deve levantar, a escolha de um ator cis gênero para o papel de Lara – tudo o mais, deixo para os verdadeiros críticos de cinema.

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