Filme de Anand Tucker , de 2005, baseado no libro Shopgirl de Steve Martin
“Certas noites, sozinho, ele
pensa nela. E certas noites, sozinha, ela pensa nele. Certas noites, isso
acontece ao mesmo tempo, e Ray e Mirabelle se relacionam sem saber.
Começo o
artigo batendo palmas, fazendo barulho, dando pulinhos e gritando “assistam!”,
“assistam!”, “assistam!”
Se pudesse,
com a ajuda de uma varinha de condão, colocaria todos diante de uma grande tela
e passaria esse filme, como uma anfitriã que, ao receber seus convidados
especiais, oferece uma sobremesa exótica e desconhecida, esperando que eles
desfrutem de seu raríssimo sabor.
Sim, gostaria
profundamente que esse filme ocupasse todas as salas de cinema comerciais para
que todos pudessem compreender como atraímos aquilo que mais tememos - SOFRER;
Como todos os mecanismos e estratégias de proteção e autodefesa de uma POSSÍVEL
dor (advinda do medo de perder algo precioso) nos garante, mais cedo ou mais
tarde, uma dor ainda pior – aquela que, por não ser enfrentada, por não ser
dilacerante e pontual, se faz presente rotineiramente, em doses homeopáticas,
camuflada, tornando nossos dias mais opacos, menos alegres, apáticos, mornos,
controlados, confirmando a perda tão temida, que talvez, se não fosse o temor,
POSSIVELMENTE nem aconteceria.
Vamos aos
nossos personagens.
Mirabelle – o arquétipo do sublime, o
objeto do desejo, o ideal a ser alcançado, o simples (aqui no sentido do
fundamental, indivisível, essencial, que não carece acréscimos). Uma artista
plástica principiante, que financiou seus estudos, saiu da pacata Vermont e foi
tentar a vida em Los Angeles. Trabalha vendendo luvas numa grande loja de
departamento e, esporadicamente, por meio de um marchand, vende seus trabalhos
artísticos. É doce, de um sorriso meigo e transparente, ligeiramente deprê, que
na intimidade, é capaz de contrapor sua aparente pacatez, com gestos audaciosos
e surpreendentes. Uma mulher diferente da maioria das mulheres.
Jeremy – o arquétipo do trapalhão, do
bobo, sem futuro. Tipógrafo e vendedor de amplificadores, é um rapaz desajustado,
sem eixo, sem grana, que conhece Mirabelle numa lavanderia e, já a partir dos
primeiros contatos, se sente motivado a se transformar para ser o escolhido de
Mirabelle. DEStemido.
Ray Porter – o arquétipo do homem bem
sucedido. Empresário rico, solteiro, meia idade, que busca uma relação que não
lhe traga riscos (de mudar, de sofrer, de sair de sua zona de conforto -
indolor). Busca uma relação que não lhe tire a garantia de um chão firme e
conhecido. Nem por isso insensível. Com uma lupa, podemos perceber um homem com
grande sede e capacidade de amar e cuidar, porém muito temeroso de se entregar.
Faz terapia e presa pela sinceridade em suas relações. Pena que não consegue
estabelecer a mesma sinceridade com ele próprio!
Vamos ao
enredo.
O maduro Ray
se encanta pela jovem e simples vendedora de luvas e dá início à conquista de
sua atenção, porém deixando claro, logo no 1º encontro, que não busca uma
relação permanente e exclusiva. Mirabelle, carente de amor, não só corresponde,
como aceita sua proposta, pois acredita que não tem muito a perder, além de não
enxergar nada suspeito no sujeito grisalho, enigmático, de olhar penetrante e
atento. Aceita um convite para jantar que dará início a uma relação gostosa,
leve e acolhedora (vide o cuidado dele com ela quando, ao deixar de tomar seus
antidepressivos, ela tem uma recaída). Ray nem sempre consegue sustentar sua
proposta de relacionamento superficial, e, por vezes, deixa escapar suas intenções
mais profundas ao fazer planos a médio prazo como, por exemplo, uma futura
viagem a NY ou a comemoração do aniversário de Mirabelle no ano seguinte.
Escapes que alimentam silenciosamente, na esperançosa mocinha, a possibilidade de
uma relação duradoura e mais profunda. Mirabelle abre seu coração, deixa esse
amor ocupar todo o espaço disponível, com cuidado devido, é certo!, mas sem
meio termos. Com uma verdade profunda. Tantos gestos de cuidado e atenção
sinalizam um sentimento elevado entre ambos, de amor e legítimo interesse em
comungar a vida.
Enquanto isso
(na sala de justiça) o despirocado Jeremy, à convite de uma banda de rock para
acompanhar uma turnê que durará alguns meses, começa a trilhar um caminho de
autoconhecimento, centramento e compreensão acerca das viabilidades de uma relação
amorosa. Tudo isso motivado pelo seu encantamento por Mirabelle. Vale destacar
que Jeremy é um ser completamente flexível, aberto às transformações, ao
crescimento, à exploração, sem muitos traumas, quase uma folha em branco que se
coloca disponível para uma história de amor.
Tudo corre bem
na relação entre Ray e Mirabelle e, embora não se fale em amor, é possível
percebê-lo em cada gesto e olhar. Até o dia em que Ray trai Mirabelle ficando com
uma conhecida. Trai como quem cava um motivo qualquer, porém infalível, para
estragar (ou testar) a relação. É dizer, sobre uma abordagem mais profunda - trai, não Mirabelle, mas o seu sentimento por ela. Sem coragem para lhe contar verbalmente sobre
sua traição, garante tal confissão com uma carta que entrega pessoalmente a ela. Eu particularmente suspeito que tal traição foi um teste de Ray, porque no
fundo ele não acreditava que Mirabelle o abandonaria. Queria mesmo testar se estavam
conseguindo manter uma relação aberta. Para sua surpresa Mirabelle sofre muito
e o abandona.
Mas Ray não
consegue sustentar esse rompimento e procura Mirabelle na tentativa de
reatarem. Após um tempo distantes acabam voltando e resgatando o frescor da
relação. Interessante como não será a traição o motivo da separação definitiva,
mas sim uma provocação “quase inconsciente” de Ray ao dizer, num tom entre a
displicência e a brincadeira, que arrumou um apartamento em NY para, quem sabe,
o dia em que ele encontrar alguém, casar e tiver filhos. É nesse instante que
Mirabelle se dá conta, com clareza, da situação que está vivendo, da falta de
perspectiva. Sabe que não sustentará isso por muito tempo e que, mais cedo ou
mais tarde, vai sofrer pelo rompimento. A corajosa Mirabelle não adia nem
dissimula a dor à espreita, e decide então colocar um fim definitivo na
relação.
Ambos vivem momentos
de luto, mas não um mesmo tipo de luto. Mirabelle foi verdadeira, se arriscou,
não poupou, não criou autodefesas vãs. Se expôs, sem orgulho e corajosamente.
Ao ir fundo em direção à inevitável dor, pode emergir revigorada e leve, como
quem salta num lago profundo e ao tocar os pés no seu fundo, num impulso forte
e decidido se projeta em direção à sua superfície. Os dias sombrios se vão e,
aos poucos, com a ajuda da sua arte, consegue virar a última página de um
capítulo de sua vida chamado Ray.
Já o luto de
Ray é um processo mais lento e difuso, bem provável, de uma vida toda. Luto de
quem não viveu plenamente, não se arriscou, não se entregou, de quem chegou até
à borda de uma piscina em um dia ensolarado e quente e só molhou as pontas dos
pés. Sofreu então a tão temida e tão evitada dor. Sentiu o quão é vão se
proteger do Amor, afinal, Ele sempre nos vence, seja se fazendo presente e nos
consumindo todo, primeiro em euforia e exaltação, mais tarde em suavidade e
ternura, seja nos abandonando e nos deixando sós, secos e sem sentido.
Quando se olha
de uma certa distância para vida, para um tempo remoto, ela parece mesmo
orquestrada, um espetáculo onde cada ato está devidamente amarrado ao outro.
Digo isso porque, é nesse distanciamento quântico entre Mirabelle e Ray que
ressurge Jeremy, chegado de um longo período sabático, podemos dizer. Ambos mudaram
muito nestes 14 meses transcorridos, não estão mais no mesmo ponto onde se
conheceram. Jeremy agora está mais centrado (menos perdido), mas igualmente disposto
a conquistar Mirabelle, afinal, foi ela a grande motivação dessa transformação.
Mirabelle continua carente e solitária, tanto quanto todos os personagens dessa história, mas
muito mais fortalecida. Cresceu, amadureceu e parece agora ela mesma pintar os
seus dias, sem depender de terceiros. Por isso, desta vez, é capaz de olhar para
Jeremy de uma forma muito mais profunda. É ela agora quem bota cor e sentido em
tudo que vive e que vê. Decide “ver” Jeremy, com suas potencialidades, sua
leveza, sua abertura e destemor para o viver. Sente a reciprocidade do seu
amor, e isso lhe faz feliz.
"Mas Mirabelle, sentindo a
reciprocidade do seu amor pela primeira vez, afasta-se dele (de Ray), e enquanto Jeremy
oferece ainda mais seu coração, Mirabelle retribui na mesma medida. (...)
Assim, Jeremy supera Ray Porter como amante de Mirabelle, pois o que ele
oferece a ela é terno e verdadeiro. (...)"
De sua parte,
Ray toca sua vida, como antes de conhecer Mirabelle.
O último
encontro entre ambos é de uma beleza ímpar. Temos um quadro nítido do que
podemos fazer com a nossa vida. Podemos dar valor a esse presente da vida, que
é amar, e fazê-lo florescer, ou podemos, por medo, deixa-lo minguar, guardado
pra sempre em uma caixinha no fundo do armário. Nesse último encontro Ray se dá
conta do que perdeu por medo de perder.
“Ao ver Mirabelle se afastar, Ray
Porter sentiu uma perda. Como é possível, pensou ele, sofrer por uma mulher que
manteve à distância para não sentir falta dela quando ela fosse embora? Só
então percebeu o quanto querer só uma parte dela fez os dois sofrerem. E como
não podia justificar seus atos, exceto por, “Bem... A vida é assim.”
Detalhes a serem observados:
ü A observação de Mirabelle de que nada em Ray parecia suspeito.
ü Ray ao tirar o relógio do pulso de Mirabelle diz: “Agora eu sou o seu relógio”
ü Na primeira vez que vai à casa de Ray, ela o espera nua sobre sua cama.
ü Ray sempre esperando por Mirabelle na porta de sua casa.
ü O cuidado de Ray quando Mirabelle fica depressiva.
ü O tom verde que sobressai da casa de Mirabelle.
ü Quando a amiga pergunta a Ray se ele está apaixonado.
ü Ray fazendo terapia com um possível psicanalista (que não aparece o rosto) e ela fazendo “terapia” na mesa, com as colegas. Falam do mesmo assunto, mas sob perspectivas opostas.
ü Ray surpreso ao achar que, mesmo revelando sua traição, tudo ficaria bem.
ü Jeremy confessando que foi Mirabelle quem o fez mudar.
ü Mirabelle ao compreender o lamento de Ray em ter amado ela daquela forma.
ü O presente (sua obra) que Mirabelle dá para Ray, como símbolo do elo que sempre haverá entre eles.
Vanessa, você se superando a cada comentário. Se as resenhas anteriores são muito boas, essa última, a meu ver, está magnífica!
ResponderExcluirE diante da sua recomendação, mais do que nunca verei o filme.
Abs
Olá Dattoli, que beleza que tenha gostado. A intenção é essa mesma - divulgar filmes com conteúdo e, principalmente, trocar experiências. Se vc vai assistir o filme, já fico feliz. Aí então podemos trocar figurinhas sobre o que achou, ampliando nossas percepções. Abs.
ExcluirVanessa, me rendo ao seu talento.
ResponderExcluirDa maneira como você descreve, com sua rica, pessoal e envolvente narrativa, fico pensando se você não deveria escrever um livro, sua biografia talvez, e a disponibilizasse para um filme, mas que você própria seria a diretora, roteirista e a protagonista. O Oscar finalmente viria para o Brasil, ganhando em todas as categorias. Parabéns!
Prezada Vanessa,
ResponderExcluirFilme muito bom. Muito bom mesmo. Imperdível. Sua resenha, Nota 10! Aqui e acolá supera o próprio filme. Se há algo a acrescentar é sobre a solidão dos personagens. Solidão esta explorada com muita leveza, na figura de Mirabelle. Mas com muita clareza. O nascedouro do filme é a solidão. Solidão que junto à carência afetiva, leva aos antidepressivos, ao sexo sem compromisso, à relações superficiais e descartáveis,tão comum na sociedade atual.
Uma observação secundária: Acho que o "pai da noiva" poderia ter se apresentado, menos sistemático, estudado, menos robótico, menos morto-vivo. ..
De resto NOTA 10.
Acho que Deus não só lhe tirou para dançar mas também para escrever resenhas cinematográficas.
Gente, isto aqui é apenas um pitaco sem pretensão alguma. Pitaco de um apreciador de bons filmes e de resenhas escritas por pessoas inteligentes
P.S. Uma correção.
ResponderExcluirNo terceiro parágrafo leia-se:
Prezada VANESSA, acho que Deus..........
Sabe Buriti, tb achei Ray meio apático, morto-vivo. Talvez seja essa "falta de brilho" que o ator buscou para nos mostrar uma pessoa que "vive pela metade", que não arrisca, numa depressão funcional. Sem dúvida o filme fala sobre a solidão, sobre a carência afetiva, e nos mostra que ela independe de classe social, econômica, e posses. Tudo tão descartável, efêmero, tão individualista, que temer compartilhar momentos, o tempo, a vida, passou a ser comum. Acho que os três personagens mostram-se carentes, só que cada um a vive de uma forma. Mirabelle, ouvindo o programa de rádio enquanto dirige, acredita precisar apenas de um abraço. Só um abraço! Mas veja, um abraço que dure. Que se possa abraçar hoje, amanhã, depois... e depois. Ela aceitou o "abraço" (o sentimento) que Ray tinha para oferecer, e só não permaneceu nesse abraço pq ele não era durável ao tempo, não vislumbrava fundir-se ao dela para, juntos, escreverem uma história comum. Foi Jeremy quem pode lhe oferecer um "abraço" sem prazo de validade, sem reservas, e sem condições. O filme fala, num primeiro plano, sobre solidão, mas num segundo plano, sobre nossa necessidade de desafiar o tempo findável. De fazer durar, de apontar para a eternidade, de buscarmos ser eternamente felizes e completos. Não acha?
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