Sobre o filme “Pedalando com
Molière” (“Alceste à bicyclette”)
Filme de Philippe Le Guay - 2013
Um respeitado ator chamado Serge
Tanneur, desiludido com o superficial e dissimulado mundo artístico, decide
abandonar os palcos e se isolar na Ilha de Ré, uma pequena ilha francesa
situada no Golfo da Biscaia, na região de
Poitou-Charentes.
Sua pacata rotina é interrompida
com a visita aparentemente despretensiosa de Gauthier Valence, ator de
televisão popular, muito assediado pela mídia e fãs. Gauthier o convida a,
juntos, montarem uma adaptação de O Misantropo, de Molière. Serge lhe propõe o
desafio de ambos ensaiarem a primeira cena da peça, nos papéis de Philinte e
Alceste, e só depois de cinco dias de ensaio, dar uma resposta sobre sua
participação. Gauthier aceita o desafio e então, os jogos de poder e
manipulação manifestos no texto teatral começam a ser “metaforeados” pela luta
de egos entre esses dois artistas.
Esta seria uma boa sinopse da
obra cinematográfica. Todavia, proponho ainda outra, mais adequada à proposta
inicial deste blog. Seria assim: trata-se
do confronto de duas máscaras - a do “bom moço, bem adaptado” e a do “rebelde
incompreendido” que, uma vez polarizados e confrontados, têm a oportunidade de
caminharem rumo ao centro dessa grande linha que é a auto realização, onde as
máscaras já não nos causam dores e infelicidades.
Perdoem-me leitores a antecipação
do final, mas... Preciso dizer que isso não vai acontecer, afinal é um processo
muito doloroso no qual exige coragem. Acabam ambos, por fim, reforçando ainda mais
suas máscaras e cerrando as portas que poderiam leva-los a descoberta do que
está incomodamente encoberto.
O primeiro personagem, Gauthier,
é um sujeito evidentemente vaidoso, que está disposto a pagar, com sua falta de
privacidade e tempo, pela imagem de bom moço, queridinho do público, o artista
bem sucedido. Essa máscara, de pessoa bem educada, acessível, gentil,
galanteador, lhe rende caches vultosos como ator de série de TV. Sempre “bem
intencionado”, sai à procura, inconscientemente, do antídoto que vai lhe fazer
confrontar com sua própria sombra, aquilo que ele não ousa enxergar, o antigo
colega de palco, o tarimbado ator Serge Tanneur. Aparentemente desprentencioso,
Gauthier chega à casa do colega como quem nada quer: “Estava passando e...”.
Serge, desconfiado, esperto, deixa o tempo rolar até ver onde o inesperado visitante
pretende chegar. Não tarda muito para Gauthier revelar sua intenção em propor a
remontagem da adaptação de Molière. Serge, calejado do efeito devastador que
tem “as segundas intenções humanas”, homem safo, entra no jogo de manipulação e
promete dar-lhe uma resposta só ao cabo de 5 dias de ensaio. Gauthier suspeita
do início da “partida”, porém, sedento e refém de seu próprio plano, aceita a
condição à contragosto, já desconfiando vítima de sua própria presa.
Boa parte do filme acontece no
desenrolar dos ensaios e estes são os momentos mais férteis do filme, uma vez
que se instala um grande “palco” (ou arena!) para o duelo de egos, onde peça
escrita e realidade se confundem graças à semelhança entre os personagens da
ficção e os reais: Alceste e Fhilinto; Serge e Gauthier.
Gauthier, em seu aspecto falseado,
ao se confrontar com o autêntico Serge (autêntico, mas talvez igualmente
infeliz) sente, a cada ensaio, a pressão de seu ser mais íntimo, ansioso por
ser revelado em sua essência, em mostrar o que realmente lhe “cae bien”, mas
que sua energia direcionada ao pesado papel de bom moço lhe impede de
experimentar. Até que chega aquele momento inevitável, e tão esperado, de
explosão, onde sua pesada máscara deixa brecha para revelar um homem medroso,
impotente e incompleto. E isso vem à tona em um momento de fúria provocada pelo
ato recorrente de seu colega em corrigi-lo por mitigar uma palavra de sua fala
teatral. Serge lhe alerta que “Gritar não é poderoso” e que sua civilidade é o que lhe impede de chegar
ao sentimento.
Quanto ao Serge, é possível dizer
que no fundo ele se julga uma vítima do sistema, quase como uma criança que se
sente incompreendida. Julga-se tão diferente e especial, que não lhe convém
viver entre os normais imorais. É um pária social, um incompreendido e
desiludido com a humanidade. Se julga muito autêntico e leal, vítima de uma
sociedade corrompida e fútil. Talvez por essa razão não deseje colocar mais uma
criança nesse mundo e quer se submeter a uma vasectomia.
Até que entra em cena Francesca, uma linda italiana recém separada, que passa por um momento de profunda dor. Francesca e Serge compartilham da mesma amargura e não tardarão em descobrir afinidades já no segundo encontro, quando ela lhe oferece uma carona, por acaso, justamente na hora em que Serge espera por um transporte público que lhe levará rumo ao hospital, onde se submeterá à tal vasectomia. É neste momento, dentro do carro, que o cupido lança suas flechas em direção ao coração de ambos e, neste instante de afrouxamento das amarras que só o amor é capaz de provocar, que ambos comungam juntos uma bela música italiana – Il Mondo. O Serge que chega ao hospital já não é o mesmo que saiu de casa naquela manhã. Esse novo Serge vê um quê de esperança na humanidade. Para ele, essa falta de esperança, simbolizada pelo ato de se vasectomizar, já não faz sentido. Serge foge, literalmente, da mesa de cirurgia. Este rasgo de felicidade, que faz tudo vibrar e se iluminar, não tardará em desaparecer pois, se é verdade que atraímos aquilo que cremos profundamente, se é verdade que muitas vezes nos boicotamos ao não reconhecer nossa vocação primeira para o amor e em sermos a própria felicidade, Serge novamente irá se decepcionar, e recuará à sua redoma, talvez agora mais estreita, mais apertada, mais sufocante, porém um lugar sem riscos e já conhecido. Na última cena do filme temos de volta aquele homem rijo, e talvez, ainda mais amargo.
Até que entra em cena Francesca, uma linda italiana recém separada, que passa por um momento de profunda dor. Francesca e Serge compartilham da mesma amargura e não tardarão em descobrir afinidades já no segundo encontro, quando ela lhe oferece uma carona, por acaso, justamente na hora em que Serge espera por um transporte público que lhe levará rumo ao hospital, onde se submeterá à tal vasectomia. É neste momento, dentro do carro, que o cupido lança suas flechas em direção ao coração de ambos e, neste instante de afrouxamento das amarras que só o amor é capaz de provocar, que ambos comungam juntos uma bela música italiana – Il Mondo. O Serge que chega ao hospital já não é o mesmo que saiu de casa naquela manhã. Esse novo Serge vê um quê de esperança na humanidade. Para ele, essa falta de esperança, simbolizada pelo ato de se vasectomizar, já não faz sentido. Serge foge, literalmente, da mesa de cirurgia. Este rasgo de felicidade, que faz tudo vibrar e se iluminar, não tardará em desaparecer pois, se é verdade que atraímos aquilo que cremos profundamente, se é verdade que muitas vezes nos boicotamos ao não reconhecer nossa vocação primeira para o amor e em sermos a própria felicidade, Serge novamente irá se decepcionar, e recuará à sua redoma, talvez agora mais estreita, mais apertada, mais sufocante, porém um lugar sem riscos e já conhecido. Na última cena do filme temos de volta aquele homem rijo, e talvez, ainda mais amargo.
Vale aqui minha reflexão final:
Serge, tal qual Gauthier, expressa uma grande vaidade, todavia sob o viés da
rebeldia, da intolerância e não pactuação com uma sociedade vil. Lembre-se,
logo no início ele se auto define a partir de um comentário sobre o problema do
mau cheiro vindo da fossa em seu quintal: “Não gosto de ser conectado. Gosto de
ser independente”.
Vanessa, excelente essa sua crítica, vasta e rica, sobre Pedalando com Molière. Havia assistido o filme ano passado, gostei, mas diante das percepções por você trazidas, quero ver o filme novamente. Parabéns e esperarei pelas próximas!
ResponderExcluirAbs, JC Dattoli
Dattoli, que pena! Parece que minha resposta no dia 16 não ficou registrada. Estou apanhando um pouco com o blog. Nova tentativa: "Fico feliz e agradecida pelo seu incentivador comentário. Faz-me mais corajosa em meter o bedelho em assuntos sobre os quais apenas farejo, tateio, de forma curiosa e especulativa. Muito obrigada!"
ExcluirVanessa, quem conhece seu talento, suas habilidades e seu empreendedorismo, sabe e acredita no positivismo que virá de você, ainda assim, você tem o dom e o potencial de surpreender ainda mais, a cada dia uma nova surpresa.... como se o Sol raiasse a cada dia com uma cor diferente. Parabéns Neguinha!
ResponderExcluirObrigada Sr. Cortez, pelo grande incentivo. Sempre acompanhando, carinhosamente, meus pequenos passos. Namastê!
ResponderExcluirOlá Vanessa,
ResponderExcluircom seus pequenos passos, como aquelas orientais com o título do quadro acima, e com o seu imenso talento, você vai loooge! Namastê!